sábado, 23 de janeiro de 2016

UM CASO EXEMPLAR: A DESTRUIÇÃO DA SALA DE AULA TRADICIONAL

Enquanto dispositivo cénico, a sala de aula tradicional foi objeto de uma desmontagem bem‑sucedida, mas cujos pressupostos pseudodemocráticos contribuíram objetivamente para a degradação da qualidade do processo de ensino e aprendizagem. No caso português, em particular, assistimos, imediatamente após o 25 de Abril, à perversa aliança entre o delírio ideológico e a urgência económica, tendo em vista a necessidade inadiável de responder à explosão da população estudantil. Como albergá‑la? Exigia‑se então uma resposta ágil, o que nos trouxe, por exemplo, o horror estético e a sobrelotação de algumas dezenas de escolas dos centros e subúrbios urbanos. Eis uma história que não esquecemos.
Dada a economia deste artigo, que não pretende ser politicamente correto, há de girar a presente reflexão tão‑somente em torno das peças‑chave da organização espacial da sala de aula tradicional. Vamos, pois, convocar à nossa presença as figuras do estrado e da carteira. Relativamente àquele, impõe‑se primeiro um olhar ergonómico, i.e., que o descreva apenas sob o ponto de vista das suas aptidões funcionais, sendo elas, pelo menos, duas, a saber: (i) garantir o contacto ocular entre as personagens da cena didática, resolvendo, à partida, eventuais constrangimentos advenientes da morfologia corporal dos seus intérpretes; e (ii) possibilitar o aproveitamento integral do quadro, enquanto instrumento incontornável do exercício magistral, libertando‑o, portanto, de quaisquer entraves à sua visibilidade plena. Como estamos a ver, o estrado desempenha, num plano arquitetónico, um papel estrutural, porquanto regula, desde logo, os focos da atenção discente, de que depende, claro está, a viabilização da relação pedagógica. Além disso, potencia, já num outro nível de análise, o «pathos da distância» (com a devida vénia a Nietzsche), sem o qual, realmente, toda a prática letiva corre o risco de um desvirtuamento psicagógico. Entre os seus mais evidentes e perniciosos sinais contemporâneos, de resto, devemos incluir a corrosão simbólica da autoridade cognitiva dos professores.
Por oposição ao estrado, que emerge como palco central do desempenho docente, a carteira constitui‑se, enquanto lugar do aluno, como o suporte «ortopédico» da atitude a docilidade (no sentido etimológico do termo) que dele institucionalmente se espera. Daí que lhe sejam particularmente próprias certas características coreográficas: acima de tudo, a sua realidade individual e inamovível; e, ainda, o respetivo alinhamento vertical. Tanto o estrado como a carteira formam assim um par que suporta funcionalmente a «ortopedia do espírito» que se consuma em plena sala de aula. Mas trata‑se de um regime monárquico que parece ser incompatível, segundo os novos sacerdotes da educação, com as promessas libertárias da democracia.
Para a destruição histórica desse par estratégico, que enquadra didaticamente a reciprocidade intrínseca entre dizer e perceber, não só contribuíram motivos políticos, mas também, como sabemos, pressões financeiras. Certo é que, por força de uma tal mixórdia causal, nasceu um monstro: o imenso frenesim da «louca da casa», a imaginação psicopedagógica, cuja histeria multiplicou de lés a lés experiências, inovações e «boas práticas». É o seu vero e real fruto o excesso de ruído e brilho que hoje contamina irremediavelmente a lusíada sala de aula.
A rasura absoluta do estrado é, por isso mesmo, a «passagem do Noroeste» dos defensores de um modelo educativo que promove a diluição das fronteiras entre ensino e aprendizagem. Por essa via romântica, que insiste em tornar equivalentes intervenções díspares (designadamente, a educação e a instrução), alimenta‑se a confusão de papéis e abre‑se o caminho para a irrelevância cultural dos curricula. Tudo isto é feito, aliás, com a inconsciência de quem imagina ser possível que um simples chavão «aprender a aprender» seja a via régia de uma viragem civilizacional. Na impossibilidade objetiva de uma creatio ex nihilo, não há didática (tradicional ou moderna) que possa sobreviver sem recursos «ortopédicos», i.e., que regulem as transações epistémicas e axiológicas dos intervenientes em todo o processo de ensino e aprendizagem. Sem essa regulação (monocêntrica ou outra), só nos resta o convívio com alunos «indóceis» (unicamente disponíveis, porventura, para a selvagem exploração dos conteúdos das redes sociais). Se for esse o caso, assistir‑se‑á ao irreversível e progressivo declínio da agência republicana por excelência: a Escola Pública.



In Vaca Malhada, Revista de Filosofia, nº 3 (Primavera de 2015), pp. 33-44.

In «O Tecto»,
Ano XII, n.º 90,
fevereiro/2017, pág. 11.

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