UM CASO EXEMPLAR: A DESTRUIÇÃO DA SALA DE AULA TRADICIONAL
Enquanto
dispositivo cénico, a sala de aula tradicional foi objeto de uma desmontagem
bem‑sucedida, mas cujos pressupostos pseudodemocráticos contribuíram
objetivamente para a degradação da qualidade do processo de ensino e
aprendizagem. No caso português, em particular, assistimos, imediatamente após
o 25 de Abril, à perversa aliança entre o delírio ideológico e a urgência
económica, tendo em vista a necessidade — inadiável
—
de responder à explosão da população estudantil. Como albergá‑la? Exigia‑se
então uma resposta ágil, o que nos trouxe, por exemplo, o horror estético e a
sobrelotação de algumas dezenas de escolas dos centros e subúrbios urbanos. Eis
uma história que não esquecemos.
Dada a
economia deste artigo, que não pretende
ser politicamente correto, há de girar a presente reflexão tão‑somente em
torno das peças‑chave da organização espacial da sala de aula tradicional.
Vamos, pois, convocar à nossa presença as figuras do estrado e da carteira.
Relativamente àquele, impõe‑se primeiro um olhar ergonómico, i.e., que o descreva apenas sob o ponto
de vista das suas aptidões funcionais, sendo elas, pelo menos, duas, a saber: (i) garantir o contacto ocular entre as
personagens da cena didática, resolvendo, à partida, eventuais constrangimentos
advenientes da morfologia corporal dos seus intérpretes; e (ii) possibilitar o aproveitamento
integral do quadro, enquanto instrumento incontornável do exercício magistral, libertando‑o,
portanto, de quaisquer entraves à sua visibilidade plena. Como estamos a ver, o
estrado desempenha, num plano arquitetónico, um papel estrutural, porquanto
regula, desde logo, os focos da atenção discente, de que depende, claro está, a
viabilização da relação pedagógica. Além disso, potencia, já num outro nível de
análise, o «pathos da distância» (com
a devida vénia a Nietzsche), sem o qual, realmente, toda a prática letiva corre
o risco de um desvirtuamento psicagógico. Entre os seus mais evidentes e
perniciosos sinais contemporâneos, de resto, devemos incluir a corrosão
simbólica da autoridade cognitiva dos professores.
Por
oposição ao estrado, que emerge como palco central do desempenho docente, a
carteira constitui‑se, enquanto lugar do aluno, como o suporte «ortopédico» da
atitude — a
docilidade (no sentido etimológico do
termo) — que
dele institucionalmente se espera. Daí que lhe sejam particularmente próprias
certas características coreográficas: acima de tudo, a sua realidade individual
e inamovível; e, ainda, o respetivo alinhamento vertical. Tanto o estrado como
a carteira formam assim um par que suporta funcionalmente a «ortopedia do
espírito» que se consuma em plena sala de aula. Mas trata‑se de um regime
monárquico que parece ser incompatível, segundo os novos sacerdotes da
educação, com as promessas libertárias da democracia.
Para a
destruição histórica desse par estratégico, que enquadra didaticamente a
reciprocidade intrínseca entre dizer e perceber, não só contribuíram motivos
políticos, mas também, como sabemos, pressões financeiras. Certo é que, por
força de uma tal mixórdia causal, nasceu um monstro: o imenso frenesim da
«louca da casa», a imaginação psicopedagógica, cuja histeria multiplicou — de lés
a lés —
experiências, inovações e «boas práticas». É o seu vero e real fruto o excesso de ruído e brilho que hoje
contamina irremediavelmente a lusíada sala de aula.
A
rasura absoluta do estrado é, por isso mesmo, a «passagem do Noroeste» dos
defensores de um modelo educativo que promove a diluição das fronteiras entre
ensino e aprendizagem. Por essa via romântica, que insiste em tornar
equivalentes intervenções díspares (designadamente, a educação e a instrução),
alimenta‑se a confusão de papéis e abre‑se o caminho para a irrelevância
cultural dos curricula. Tudo isto é
feito, aliás, com a inconsciência de quem imagina ser possível que um simples
chavão — «aprender
a aprender» — seja a via régia de uma viragem civilizacional.
Na impossibilidade objetiva de uma creatio
ex nihilo, não há didática (tradicional ou moderna) que possa sobreviver sem
recursos «ortopédicos», i.e., que
regulem as transações epistémicas e axiológicas dos intervenientes em todo o
processo de ensino e aprendizagem. Sem essa regulação (monocêntrica ou outra),
só nos resta o convívio com alunos «indóceis» (unicamente disponíveis,
porventura, para a selvagem exploração dos conteúdos das redes sociais). Se for
esse o caso, assistir‑se‑á ao irreversível e progressivo declínio da agência
republicana por excelência: a Escola Pública.
In Vaca
Malhada, Revista de Filosofia, nº 3 (Primavera de 2015), pp. 33-44.
In «O Tecto»,
Ano XII, n.º 90,
fevereiro/2017, pág. 11.
Etiquetas: CENA DIDÁCTICA
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