METAMORFOSE
(À
memória do escritor que capturou a décima primeira letra do alfabeto latino.)
Não são
muitas as palavras que possuem o privilégio, desde logo, de remeter o ouvinte
para um particular universo literário. Dessa família aristocrática faz certamente
parte a que nos trouxe aqui. Não se afigura ser possível, com efeito, invocar a
metamorfose — sem que perpasse entre nós a sombra subitânea de um peculiar
caixeiro-viajante. Quem não conhece a
história de Gregor Samsa? Sabemos que um belo dia despertou — e não se
reconheceu. Sem saber como nem porquê, transformara‑se num formidável insecto.
Por obra e graça de Kafka, a estranha personagem (barata? besouro?
escaravelho?) tornou‑se o pesadelo de milhões de leitores. Muitos deles, pelo
menos, postos perante tal relato (kafkiano, doravante), não deixaram, nesse
mesmo tempo, de recear — pela primeira vez — os dulcíssimos abraços de Morfeu.
E, dormida a noite, com certeza que sentiram, ao acordar, o sublime alívio pelo
facto de o espelho lhes devolver o costumeiro semblante. Tudo à volta, no
entanto, passara a ter o perfume indiscreto de uma linguagem antiga e
sacrificial. E assim se dizia adeus à falsa nova da inocência das coisas.
Outras
transformações há, porventura, que nada devem à melancolia genial de um obscuro
judeu de Praga. Existem realmente metamorfoses que não são pragas, mas
maravilhas da Natureza. Veja‑se o caso paradigmático da crisálida, de que
resulta, aliás, finda a primitiva condição larvar, o soberbo resplendor da
borboleta primaveril. Do caçador que dela busque, então, a beleza esvoaçante,
sob a imensa campânula do Sol, só queremos que, a manter‑se a imagem, falhe a
rede. Tanto o homem quanto o lepidóptero, é certo, merecem a eternidade do
movimento. Deixemo‑los, pois, correr, como se fossem pasto de um velho
cinematógrafo, todo o campo tranquilo do olhar.
Além da
entomologia e das suas extravagâncias, quer literárias quer científicas,
havemos finalmente de encontrar o melhor símile metamórfico. Onde? Nessa
passagem luminosa, que já pertence ao reino da pedagogia, que traz o infante —
aquele que ainda não fala — de regresso a si, isto é, à sua forma humana. Nessa
mesma passagem, a da ignorância à sabedoria, sempre se repete o gesto que une
as gerações, impedindo‑as precisamente de partir do zero. Do oleiro maior deste
processo, em cujas mãos a nossa matéria se torna argila dócil, nem sequer urge
dizer o nome. Basta apenas que se cultive em casa — dia a dia — a sua interminável
homenagem.
Eurico
de Carvalho
In «O Tecto»,
Ano XII,
nº 89,
ABRIL/2016, p. 3.
Etiquetas: PROSA
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