terça-feira, 3 de maio de 2016

METAMORFOSE





(À memória do escritor que capturou a décima primeira letra do alfabeto latino.)

Não são muitas as palavras que possuem o privilégio, desde logo, de remeter o ouvinte para um particular universo literário. Dessa família aristocrática faz certamente parte a que nos trouxe aqui. Não se afigura ser possível, com efeito, invocar a metamorfose — sem que perpasse entre nós a sombra subitânea de um peculiar caixeiro-viajante. Quem não conhece a história de Gregor Samsa? Sabemos que um belo dia despertou — e não se reconheceu. Sem saber como nem porquê, transformara‑se num formidável insecto. Por obra e graça de Kafka, a estranha personagem (barata? besouro? escaravelho?) tornou‑se o pesadelo de milhões de leitores. Muitos deles, pelo menos, postos perante tal relato (kafkiano, doravante), não deixaram, nesse mesmo tempo, de recear — pela primeira vez — os dulcíssimos abraços de Morfeu. E, dormida a noite, com certeza que sentiram, ao acordar, o sublime alívio pelo facto de o espelho lhes devolver o costumeiro semblante. Tudo à volta, no entanto, passara a ter o perfume indiscreto de uma linguagem antiga e sacrificial. E assim se dizia adeus à falsa nova da inocência das coisas.
Outras transformações há, porventura, que nada devem à melancolia genial de um obscuro judeu de Praga. Existem realmente metamorfoses que não são pragas, mas maravilhas da Natureza. Veja‑se o caso paradigmático da crisálida, de que resulta, aliás, finda a primitiva condição larvar, o soberbo resplendor da borboleta primaveril. Do caçador que dela busque, então, a beleza esvoaçante, sob a imensa campânula do Sol, só queremos que, a manter‑se a imagem, falhe a rede. Tanto o homem quanto o lepidóptero, é certo, merecem a eternidade do movimento. Deixemo‑los, pois, correr, como se fossem pasto de um velho cinematógrafo, todo o campo tranquilo do olhar. 
Além da entomologia e das suas extravagâncias, quer literárias quer científicas, havemos finalmente de encontrar o melhor símile metamórfico. Onde? Nessa passagem luminosa, que já pertence ao reino da pedagogia, que traz o infante — aquele que ainda não fala — de regresso a si, isto é, à sua forma humana. Nessa mesma passagem, a da ignorância à sabedoria, sempre se repete o gesto que une as gerações, impedindo‑as precisamente de partir do zero. Do oleiro maior deste processo, em cujas mãos a nossa matéria se torna argila dócil, nem sequer urge dizer o nome. Basta apenas que se cultive em casa — dia a dia — a sua interminável homenagem.

Eurico de Carvalho
 In «O Tecto»,
Ano XII, nº 89,
 ABRIL/2016, p. 3.

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