quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

MIGALHAS DE PSICOLOGIA: DILTHEY, FREUD E TUTTI QUANTI

De acordo com Delfim Santos, devemos reconhecer em Dilthey «o mérito de ter chamado a atenção para o seguinte facto: que o método da psicologia, como Geisteswissenschaft (ciência do espírito), não podia ser uma construção a partir de elementos, forças e leis, como acontecia com as ciências físico‑químicas, e segundo era intenção dos associacionistas, em especial, Herbart, Spencer e Taine. À noção de psicologia explicativa opôs ele a noção de psicologia descritiva, como primeiro passo para a libertação do excessivo causalismo de que os associacionistas faziam uso» (Obras Completas, II, pp. 407‑8). Na realidade, com eles, responsáveis pela transposição dos princípios da mecânica para o estudo da vida mental, «acreditou‑se [erroneamente] ter achado na ‘associação’ uma ‘lei’ correspondente em psicologia ao que fora na ‘filosofia natural’ a lei de Newton» (Vieira de Almeida, Obra Filosófica, III, p. 438). «A psicologia, porém, não é nenhuma ciência explicativa. Por isso, o método não é o mesmo que na ciência natural matemática» (Dilthey, Teoria das Concepções do Mundo, 1931, p. 43).

Mas a tese acerca da essência inconsciente do psiquismo garantiu à psicologia (disse‑o Freud taxativamente) um lugar entre as ciências da natureza <Naturwissenschaften> (Resumo de Psicanálise, 1938, p. 112). Trata‑se de um equívoco cientificista que o leva a conceber os estados psíquicos — na esteira do associacionismo — em termos mecânicos: «Presumimos que a vida mental é função de um aparelho ao qual atribuímos as características de ser extenso no espaço e de ser constituído por diversas partes, ou seja, que imaginamos como semelhante a um telescópio, microscópio, ou algo desse género» (id.: 103; grifo nosso). Que longe estamos do pensamento de Dilthey, para o qual a «máquina é, por si, inessencial, desprovida de Si mesmo» (id.: 37) — e, assim sendo, absolutamente insusceptível de servir de modelo do espírito! Desconheceu o «pai» da psicanálise, por conseguinte, o seu verdadeiro elemento: a auto‑reflexão (cf. Habermas, Conhecimento e Interesse, 1968, pp. 278‑304).

Quanto à dimensão clínica da psicanálise, Freud afirma claramente que o seu método psicoterápico se dirige aos neuróticos — e não aos psicóticos:

[...] descobrimos que temos de renunciar à ideia de experimentar o nosso plano de cura com os psicóticos — renunciar a ele talvez para sempre ou talvez apenas por enquanto, até que tenhamos encontrado um outro plano que se lhes adapte melhor.

Existe, entretanto, outra classe de pacientes psíquicos que visivelmente se assemelha muito de perto aos psicóticos — o vasto número de pessoas que sofrem de graves neuroses. Os determinantes da sua doença, bem como os seus mecanismos patogénicos, devem ser os mesmos ou, pelo menos, muito semelhantes. Mas o Eu[i] mostrou‑se mais resistente e tornou‑se menos desorganizado. Muitos deles, apesar da doença e das inadequações delas decorrentes, foram capazes de manter‑se na vida real. Esses neuróticos podem mostrar‑se prontos a aceitar o nosso auxílio (1938: 124).

Tendo em conta esta limitação terapêutica, compreende‑se que, na sua dimensão metapsicológica, a psicanálise se apresente como uma sistematização e extrapolação dos resultados do estudo clínico das neuroses. É isso mesmo que nos dizem Laplanche & Pontalis:

Se procurarmos estabelecer, no plano da compreensão do conceito, a especificidade da neurose tal como a clínica a define, a tarefa tende a confundir‑se com a própria teoria psicanalítica, enquanto esta se constitui fundamentalmente como teoria do conflito neurótico e das suas modalidades (Vocabulário da Psicanálise, 1967, pp. 253‑4).

A pertinência do que acima ficou dito não dispensa, todavia, a necessidade de uma caracterização genérica da referida afecção psicogénica. Para Freud, as neuroses não são senão, como se infere da penúltima citação, «distúrbios do Eu». Serão então equivalentes às «perturbações da personalidade»? A questão faz todo o sentido, porque o Eu de que fala o psicanalista não se confunde com a totalidade da vida psíquica do indivíduo (o «Si mesmo» de Dilthey); na verdade, consiste apenas numa instância situada, conforme à segunda tópica, entre o Id[ii] e o Sobreeu[iii], o que destrói por completo um pressuposto do filósofo alemão: a integridade espiritual das vivências da alma. Mas é preciso ter isto em conta: do ponto de vista dinâmico, que aqui nos interessa sobremaneira, «o Eu representa eminentemente no conflito neurótico o pólo defensivo da personalidade» (id.: 119). Além disso, a viragem de 1920 dá‑lhe um estatuto central no conjunto do aparelho psíquico. Não é desejável no entanto, para os autores do Vocabulário da Psicanálise, «apresentar desde logo uma distinção decisiva entre o eu como pessoa e o Eu como instância, porque a articulação destes dois sentidos está precisamente no centro da problemática do Eu» (ibid.). Nesta ambiguidade constitutiva do Eu psicanalítico está, julgamos nós, a fonte do fenómeno psicoterapêutico apontado por Pio Abreu: a assimilação freudiana das «perturbações da personalidade» (psicopatias) às neuroses (Introdução à Psicopatologia Compreensiva, 1994, p. 187). Não é também alheia a essa assimilação o facto de ambas pertencerem a um mesmo grupo nosográfico: o das perturbações psíquicas compreensíveis (id.: 170‑1). E assim as podemos qualificar, na verdade, porque revelando um grau patológico inferior às psicoses, é possível «estabelecer‑se com esses doentes o que denominamos uma situação de empatia» (Fernandes da Fonseca, Psiquiatria e Psicopatologia — I, 1985, p.185). A tudo isto devemos por último acrescentar a intrínseca fluidez da noção freudiana de neurose:

As neuroses (diferentemente das moléstias infecciosas, por exemplo) não possuem determinantes específicos. Seria ocioso buscar nelas excitantes patogénicos. Elas transformam‑se gradualmente, através de fáceis transições, no que é descrito como normal, e, por outro lado, dificilmente existe qualquer estado reconhecido como normal em que indicações de traços neuróticos não possam ser apontados (id.: 131; grifo nosso).

Quer isto dizer que é tão‑só de grau, e não de natureza, a diferença entre estados psíquicos «normais» e «neuróticos». (Donde a importância do «factor quantitativo» na eclosão das neuroses.) Além disso, atendendo a que «as psicopatias [personalidades desarmonicamente estruturadas] conteriam elementos predisponentes (de natureza genotípica ou adquirida) para o desencadear de uma neurose» (Fonseca, id.: 184), a distinção clínica entre uma e outras não será suficientemente específica. Por outro lado, embora o «factor quantitativo» fosse de jure, para Freud, objecto de medida, não o era de facto. Mas tinha a esperança de que no futuro viesse a sê-lo. Que a «aplicação terapêutica da psicanálise seja um dia substituída pela aplicação farmacológica da bioquímica» (Habermas, id.: 279), eis, em síntese, o seu grande sonho positivista, que vai ao encontro, aliás, da própria ideia de um «aparelho psíquico»: dada a sua capacidade de transmitir e transformar energia, toda a vida mental pode ser descrita em termos económicos. Quanto à libido do Eu, mais precisamente, «a sua produção, aumento e diminuição, repartição e deslocamentos, deverão fornecer‑nos os meios de explicar os fenómenos psicossexuais» (Freud, 1905: 154). De um ponto de vista diametralmente oposto, Dilthey, embora reconheça que os conteúdos anímicos se apresentam à consciência «sem a consciência acerca da acção da força psíquica que os suscitou» (id.: 63‑64), considera absurda a tentativa de a quantificar, tanto mais que «não seria explicativa em sentido estrito uma psicologia que estabelecesse efectivamente relações quantitativas entre os factos anímicos» (id.: 40). Além do que, o desconhecimento cientificista da natureza da psicanálise redunda num paradoxo: a verdade é que a teoria atribui «um valor decisivo às relações quantitativas na organização e evolução da vida psíquica, na escolha objectal e no equilíbrio dos investimentos, na formação da capacidade para tolerar os conflitos e no seu resultado mórbido, quando o principal instrumento de análise sobre o qual ela se funda, o livre jogo associativo na cura, só se aplica directamente aos actos de fala e às representações que veiculam» (Maurice Dayan, Inconsciente e Realidade, 1985, pp. 322‑323). E temos aqui o terreno aberto para longas querelas epistemológicas, as quais, dado o seu carácter filosófico, ainda hoje rasgam o campo da psicologia.

Eurico Carvalho

Texto publicado em Julho de 2005 no jornal «O Tecto» de Vila do Conde (Ano XVII: N.º 51).

Cf. páginas 2/4.



[i] «Ego», seguindo o tradutor. Parece‑nos desnecessária, todavia, a opção, tanto mais que se trata de um pronome latino. Maiusculizando o equivalente em português do termo freudiano <Ich>, evita‑se a confusão com o seu uso pronominal (cujas ressonâncias psicologistas se acentuam com a substantivação).

[ii] Em alemão: Es. Aqui seguimos a tradução latina da substantivação freudiana do pronome neutro, que não existe no vernáculo. Devemos reconhecer os limites da língua materna. É claro que, se quiséssemos manter a simetria da nomenclatura analítica, haveria lugar para a seguinte prefixação: Subeu. Não seria feliz, porém, conceptualmente falando, a solução, porque estaríamos a identificar o que é primeiro, do ponto de vista genético, com o recurso referencial do que lhe é posterior, de acordo com a segunda tópica.

[iii] Em alemão: Über‑ich. O prefixo corresponde a super-, mas com o sentido de «superposição». Na composição vernacular, o afixo latino pode também revestir a acepção de «abundância», sendo esta aliás, dada a influência crescente da linguagem publicitária, a que tem estado em voga. Por isso mesmo, em vez de «Superego», tradução habitual do termo freudiano, servir‑nos‑emos desta alternativa: Sobreeu. E não se queira ver nisto um capricho linguístico. A nossa proposta apresenta uma dupla vantagem: 1) a palavra é genuinamente portuguesa, respeitando o «génio da língua»; 2) desde logo se elimina a possibilidade de assimilar a terceira instância da personalidade a uma espécie de «Eu engrandecido», o que não acontece com a expressão que se institucionalizou.

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