quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O FUTURO DA DEMOCRACIA

 



Em Gettysburg, e no ano em que decidiu abolir a escravatura, o décimo sexto presidente dos Estados Unidos da América, Abraham Lincoln, pronunciou um celebérrimo discurso, no qual, apelando para o beneplácito da etimologia grega, dava ao regime democrático o significado imorredoiro de governo do povo, pelo povo e para o povo. Que lexemas quase impolutos!
Em 2010, porém, e em Portugal, quando se apresta já a fanfarra do Centenário da República, urge interrogar a democracia, convocando-a à presença desse grande juiz, o tempo, e dos seus ilustres críticos.
É por de mais sabido o modo como Platão — que nunca esqueceu a morte de Sócrates nem a perdoou aos seus algozes democratas — denegriu o ideário político de Atenas, não vendo nele senão, aliás, a exaltação irracional e furiosa da demagogia. Na sua essência, de resto, o argumento platónico contra a democracia insiste na incapacidade cognitiva do povo para decidir o melhor para todos. Com efeito, a organização do Estado exige conhecimentos que não estão ao alcance do cidadão comum. Ora, o que se constitui, numa primeira análise, como uma razão que põe em xeque a democracia ateniense, ou seja, directa, também faz mossa na sua versão moderna, i.e., representativa. Na verdade, muitos eleitores não conseguem avaliar com rigor a capacidade dos candidatos à assunção de cargos públicos. Em vez de prestarem atenção às suas qualidades relevantes — para o exercício das funções que lhes cabem —, apenas se prendem, por influência do marketing, a aspectos acessórios, de que são exemplo anedótico a figura e o sorriso. E onde se impõe a fotogenia falta, por certo, o discernimento.
A este propósito, por outro lado, pode colocar‑se a questão (ultrapassando ela, no entanto, o âmbito daquilo que nos propusemos dizer) de saber em que medida o deslize semântico que hoje sofre a publicidade — a redução do seu sentido original ao vul­gar — não será um sintoma da perversidade inerente a uma conquista da Modernidade: o princípio da transparência. Basta ter presente que o processo de tornar público todo o discurso (em suma: a assunção do seu estatuto político) está ca­da vez mais dependente das regras do jogo publicitário. Trata‑se de uma dependência que afecta a própria natureza do discurso que agora se faz na ágora. Há quem avalie negativamente essa redução, explicando‑a nos termos de uma degradação mercantil do «espaço público», cuja esfera republicana, não sendo já o palco kantiano do uso crítico da razão, se torna presa fácil de todo o slogan sedutor.
A preponderância mediática da imagem acústica sobre a palavra reflexiva parece reforçar a crítica do mestre de Aristóteles, na medida em que se trata de um fenómeno que contribui objectivamente para a desnaturação espectacular do objecto da política: a promoção do bem comum. Não será possível, todavia, virar Platão contra si próprio? Não será o seu argumento antidemocrático a melhor prova de que a defesa da democracia exige a participação de todos os cidadãos? Quem se limita a votar, ou nem sequer vota, não quer exercer a cidadania que é sua, de raiz; escolhe, afinal, a degradante condição de súbdito, porquanto se torna cúmplice substantivo da degenerescência tecnocrática do único sistema institucional compatível com a dignidade do ser humano. E quanto mais se acentua a tecnocracia, cujo modelo — é bom lembrá-lo! — se encontra na República de Platão, mais se acelera a doença cancerosa dos nossos dias: a chamada «crise da representatividade». Para que a combatamos sem descanso, impõe-se a urgência de uma educação cívica que não se deixe reduzir à retórica — de mau gosto — de cariz nacionalista.
Mas o reforço da participação pública de todos os cidadãos, segundo os marxistas, não pode senão produzir — em última instância — efeitos decorativos, pois é incapaz de resolver o problema nuclear do regime democrático: o carácter meramente formal da garantia de igualdade de direitos. Com efeito, o princípio da subordinação das minorias à maioria não se reflecte, de um modo efectivo, na vida real das pessoas. De facto, enquanto forma de organização política da sociedade capitalista, a democracia institui‑se, sob o ponto de vista da sua realização prática, como o dócil «cão de guarda» das forças brutas do mercado. E por muito acarinhada que seja, a nível mediático, a ideia neoliberal de um «fim da História», está bem viva a dialéctica da exploração do homem pelo homem, não se vislumbrando, portanto, o seu ponto final. Pelo contrário, neste período de neoliberalismo, há como que um «regresso ao século XIX», porque é notório — à medida que assistimos a um paulatino abandono das funções sociais do Estado — um crescente investimento na sua natureza policial. Substitui‑se, enfim, a política pela polícia.
Quem quiser comparar o peso relativo das supracitadas críticas, a de Marx e a de Platão, verificará, sem dúvida, que é mais difícil rebater a primeira. Em todo o caso, há que tomá-la com um repto, o que significa um apelo, por muito paradoxal que o mesmo possa parecer, à democratização do próprio regime democrático! Realmente, da resposta que lhe dermos dependerá o futuro da democracia.




Eurico de Carvalho



In «O Tecto»,


Ano X, n.º 66,

Março/2010, p. 2.




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