segunda-feira, 23 de julho de 2018

GUY DEBORD, UM FILÓSOFO PARA O SÉCULO XXI


Se tomarmos como balizas de Novecentos a Revolução Russa (1917) e a implosão da União Soviética (1991), poder‑se‑á dizer que a vida e a obra de Guy Debord (1931‑1994) são inseparáveis da aurora e do crepúsculo do século XX. Com a sua morte, curiosamente, assistimos a uma tremenda explosão editorial. Para Anselm Jappe, a grande razão de ser desse fenómeno prende‑se com a «conspiração da tagarelice», sucedendo esta, aliás, à do silêncio, que selou toda a existência intelectual deste autor. Jappe faz igualmente um severo diagnóstico dos estudos debordianos: «É notória a ausência de análise teórica nos milhares de páginas recentes dedicadas a Debord.» Pelo contrário, as que pretendemos escrever hão‑de estar nos antípodas de uma perspectiva anedótica e psicologizante, que é própria de quem simplesmente nele vê um dandy. Devemos tomá‑lo, portanto, como um filósofo, ainda que ele não se reconheça como tal. Mais: a nossa hipótese de base, cuja demonstração nos cabe fazer, passa necessariamente pela afirmação de que Debord, ao retomar o caminho que vai de Marx a Adorno, consegue reanimar a teoria crítica, pondo‑a a salvo, designadamente, da crise planetária do marxismo ortodoxo. Nessa reanimação anarcomodernista, e de que a superação da arte se perfila como o ponto de partida, cumpre um papel decisivo o conceito de espectáculo, cuja compreensão exige uma distinção categorial entre aparência e simulacro. Na verdade, é absolutamente imprópria a confusão pós‑moderna entre as duas noções, o que contribui, por outro lado, para o erro de uma interpretação pós‑modernista do pensamento debordiano. São implausíveis, por exemplo, as recorrentes aproximações conceptuais entre desvio e desconstrução, deriva e nomadismo e, em especial, espectáculo e simulacro. Porquê? Porque as teorias de Derrida, Deleuze e Baudrillard se baseiam num pressuposto fundamental: a recusa da dialéctica. Para Debord, claro está, essa recusa, dada a sua condição de hegeliano‑marxista, é absolutamente inaceitável.
É por isso que, por muito apelativa que seja, por exemplo, a abordagem biográfica de Vincent Kaufmann, não a podemos fazer nossa. Realmente, está bastante longe do espírito com que empreendemos a presente investigação a defesa de uma tese comparável à seguinte: «Avant d’avoir été un théoricien ou l’animateur de l’Internationale situationniste, ou même un écrivain, Debord s’est voulu enfant perdu, s’est reconnu parmi les enfants perdus.». Eis uma visão «romântica» cuja pertinência hermenêutica pressupõe, sem dúvida, a preponderância da vida sobre a obra. Mas são os textos, em primeiro lugar, e não os actos, que temos de interrogar criticamente. A adopção desta posição metodológica não invalida, contudo, a necessidade de uma articulação entre os dois pólos, tanto mais que vamos discutir as ideias de quem, de si, um dia disse que tinha vivido exactamente como pensava que se deveria viver.
Impõe‑se, pois, o projecto de uma revalorização teórica do legado de Guy Debord. É possível cumpri‑lo de várias maneiras, das quais, basicamente, devemos distinguir duas: (i) a via ontológica e (ii) a via histórico‑crítica. Relativamente à primeira, há quem defenda, de facto, a possibilidade de um resgate ontológico do pensamento debordiano. Embora não a possamos perfilhar, queremos, desde já, discuti‑la, ainda que de uma forma sumária, com vista à clarificação do nosso posicionamento. Ora, toda a ontologia, como é sabido, pressupõe um recorte categorial da realidade, cuja expressão máxima se estrutura habitualmente sob o império axiológico de um molde binário. Donde a multiplicação metafísica de pares conceptuais. De Platão a Heidegger, passando por Kant, alguns tornaram‑se célebres: (i) sensível vs. inteligível; (ii) empírico vs. transcendental; e (iii) ôntico vs. ontológico. Impõe‑se, portanto, a questão: Será que podemos assimilar a tal genealogia filosófica a oposição debordiana entre espectáculo e situação? Num primeiro momento, dir‑se‑ia que sim. Realmente, se o espectáculo é a «organização social da aparência», o seu reverso, a situação, enquanto vivência autêntica, talvez justifique uma leitura essencialista. E se bem que esta aparente um ar sedutor, não nos parece, no entanto, legítima. Aceitá‑la, aliás, acabaria por significar a inscrição dessa antinomia radical num registo sincrónico, com a consequente admissão de uma eventual reconfiguração situacionista dos elementos do sistema espectacular vigente. Como é bom de ver, trata‑se de uma hipótese reformista que, além de ignorar os riscos de espectacularização de todas as reconfigurações criativas das actuais condições de vida, rasura por completo a aposta revolucionária de Guy Debord. Para a respeitar, pelo contrário, é preciso ler diacronicamente o binómio espectáculo‑situação, o que nos remete imediatamente para a segunda via, i.e., histórico‑crítica. No caso de Anselm Jappe, assistimos à tentativa de filiar o discurso debordiano (em cujo autor «não se encontra nenhuma tentativa de fundar uma ‘ontologia’») numa linhagem iluminista, de que a análise marxiana da economia política constitui o expoente. Sob a égide da «nova crítica do valor», valoriza‑se a «teoria do espectáculo» como um dispositivo analítico incontornável do nosso tempo. Assim sendo, há que evitar, quando se discute a noção de espectáculo, dois equívocos que habitualmente se cometem: (i) a crença de que estamos a lidar com um termo estritamente empírico, cujo campo de aplicação se restringe à área sociológica dos mass media; e (ii), de uma forma inversa, a convicção de que se trata de uma ideia metafísica — a desvalorização ontológica das imagens —, da qual, aliás, ninguém ignora a ascendência platónica. Guy Debord, porém, nem é Platão nem McLuhan.
Não nos parece legítima, todavia, a redução da bagagem filosófica de Guy Debord a um único livro: A Sociedade do Espectáculo. Trata‑se de uma falsa imagem da sua obra. Nela assenta, ademais, um obstáculo à compreensão da radicalidade do seu programa estético‑político — o situacionismo —, cuja aposta revolucionária implica a ultrapassagem do plano da pura negatividade, apelando, pois, para o movimento utópico e construtivo de um pensamento que se confronta irremediavelmente com a positividade morta da tradição.

Eurico de Carvalho
In O Tecto, n.º 75 (Outubro de 2012), pp. 2/15.







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