quinta-feira, 30 de agosto de 2018

DEVE UM AGENTE RACIONAL ACREDITAR EM DEUS?



À nossa tentativa de resposta à pergunta que encabeça o presente ensaio subjaz uma base argumentativa clássica: o «paradoxo de Epicuro». Além disso, partimos do pressuposto de que é racional o agente que possui uma particular preocupação com a verdade, não se satisfazendo apenas, pois, com a mera articulação instrumental entre meios e fins. Mas também pressupomos, conformemente à natureza normativa da interrogação que nos guia, que é igualmente racional o agente que usa a «navalha de Ockham»: entia non sunt multiplicanda præter necessitatem. Por outras palavras: o princípio da parcimónia exige que não se multipliquem entidades — sem necessidade. Assim sendo, vamos ver em que medida a existência do mal pode sustentar a tese de que é implausível, pelo menos, a visão teísta de Deus.

1.     O «Paradoxo de Epicuro»

Encontra‑se em Lactâncio, pensador cristão dos séculos III e IV, a primeira formulação completa de um paradoxo que ele atribui (inverosimilmente, segundo alguns especialistas[i]) a Epicuro, filósofo grego da Antiguidade. Independentemente, no entanto, da averiguação do seu verdadeiro autor, o que nos importa aqui é a discussão do próprio argumento. Atentemos, portanto, no seu conteúdo original, de acordo com a tradução do texto latino:

Ou Deus, afirma [Epicuro], quer eliminar o mal e não pode; ou pode e não quer; ou não pode nem quer. Se quer e não pode, é impotente [imbecillis], o que não convém a Deus. Se pode e não quer, é‑nos hostil [invidus], o que não convém igualmente a Deus. Se não quer nem pode, é simultaneamente impotente e invejoso; portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer, como é próprio de Deus, de onde vem, então, o mal? e porque não o elimina[ii]?

Procedendo à explicitação do «paradoxo de Epicuro»[iii], temos o seguinte argumento dedutivo:

P1. Deus é omnipotente, omnisciente e moralmente perfeito.
P2. Se Deus é omnipotente, então tem o poder de eliminar o mal.
       C1. Deus tem o poder de eliminar o mal.
P3. Se Deus é omnisciente, então sabe que o mal existe.
       C2. Deus sabe que o mal existe.
P4. Se Deus é moralmente perfeito, então tem o desejo de eliminar o mal.
       C3. Deus tem o desejo de eliminar o mal.
P5. O mal existe.
P6. Se o mal existe, então Deus não tem o poder de eliminar o mal ou não sabe que o mal existe ou não tem o desejo de eliminar o mal.
       C4. Deus não tem o poder de eliminar o mal ou não sabe que o mal existe ou não tem o desejo de eliminar o mal.
P7. Se Deus não tem o poder de eliminar o mal ou não sabe que o mal existe ou não tem o desejo de eliminar o mal, então Deus não existe.
       C5. Deus não existe[iv].

2.     A Resposta de Lactâncio

Como estamos a ver, trata‑se de um argumento válido, cujo encadeamento de premissas e corolários corresponde ao modus ponens. Mas será sólido? Lactâncio diz que não, invocando, para o efeito, a permissão divina do mal em nome de um bem maior, ou seja, o aperfeiçoamento do ser humano. Na realidade, se não conhecêssemos primeiramente o mal, argumenta Lactâncio, não poderíamos conhecer o bem. («Itaque nisi prius malum agnoverimus, nec bonum poterimus agnoscere[v].») Deste modo, afasta‑se, desde logo, a incompatibilidade lógica entre a existência de Deus e a do mal, pondo‑se em causa, precisamente, a quarta premissa. Mais tarde, os filósofos teístas conjugaram o argumento da perfeição moral com a defesa do livre‑arbítrio para tornar mais completa a sua explicação da existência do mal mundano, quer físico quer moral.

3.     A Crítica à Resposta de Lactâncio

A plausibilidade da estratégia argumentativa de Lactâncio confronta‑se com uma grande dificuldade, a saber: o sofrimento dos animais. Como explicá-lo à luz dos argumentos anteriores? Todos eles padecem presumivelmente de um mesmo defeito: o antropocentrismo. Com efeito, os animais não se aperfeiçoam moralmente nem possuem livre‑arbítrio. Ora, se bem que esta objecção à estratégia antropocêntrica dos teístas não elimine a possibilidade lógica de uma compatibilidade entre a existência de Deus e a do mal, apresenta a vantagem, pelo menos, de dar guarida epistemológica à dúvida acerca da legitimidade racional da crença em Deus.

4.     A Legitimidade Racional da Crença em Deus

Se tomarmos como modelo de racionalidade o silogismo prático, será perfeitamente razoável acreditar em Deus. Veja‑se, por exemplo, o seguinte caso:

P1. O agente A tem o desejo D (= ter uma vida eterna).
P2. A acredita que a melhor maneira de satisfazer D é fazer X (= tornar‑se crente).
       C. A faz X.

Mas um agente que se preocupe com a verdade das suas crenças (e não unicamente com a satisfação dos seus desejos) não pode cingir‑se a um tal modelo pragmático. Tem de se interrogar sobre as razões que justificam as suas crenças. No que diz respeito ao teísmo, parece que essas razões não são suficientes para afastar a suspeita de que, ainda que a existência de Deus seja compatível com a do mal, há indícios probatórios (v.g.: a desproporção quantitativa entre o bem e o mal) de que tal compatibilidade se faz à custa do sacrifício do princípio da parcimónia e da inversão do ónus da prova. Efetivamente, os teístas, para defender a sua tese, não só apelam, em última instância, para a nossa ignorância (o desconhecimentos dos desígnios de Deus), mas também para a multiplicação ad hoc de entidades metafísicas[vi].

5.     A Posição Agnóstica dos Agentes Racionais

Dada a razoabilidade da dúvida acerca da existência de Deus, parece que se impõe, a seu respeito, pelo menos, a necessidade epistémica de uma suspensão do juízo. Nisto, naturalmente, convimos com Kant, quando ele afirma a impossibilidade teórica de uma demonstração e/ou refutação da seguinte proposição: «Há um Deus[vii].» Se assim é, de facto, não resta senão a um agente racional, i.e., que se distinga pelas características que acima assinalámos, a assunção da posição que lhe é própria, ou seja, o agnosticismo. Quanto à questão da hipotética redução deste último, em termos práticos, a um ateísmo, eis um problema que já ultrapassa os limites deste ensaio.

Eurico de Carvalho
In A Vaca Malhada, n.º 15 (Primavera de 2018), pp. 20‑21.


[i] Cf. PENWILL, John (2004) — «Does God Care? Lactantius v. Epicurus in the “De Ira Dei”» In Sophia: International Journal of Philosophy and Traditions. Springer Netherlands: 43, 1, p. 40 (n. 26).
[ii] «Deus, inquit [Epicurus], aut vult tollere mala et non potest; aut potest et non vult; aut neque vult, neque potest; aut et vult et potest. Si vult et non potest, imbecillis est; quod in Deum non cadit. Si potest et non vult, invidus; quod aeque alienum a Deo. Si neque vult, neque potest, et invidus et imbecillis est; ideoque neque Deus. Si vult et potest, quod solum Deo convenit, unde ergo sunt mala? cur illa non tolli?» [LACTÂNCIO — «Liber de Ira Dei» (XIII)». In Opera Omnia. Ed. de Thomam Fritsch. Lipsiæ:  1698, p. 587].
[iii] Seguimos aqui a exposição de BRUCE, Michael & BARBONE, Steven, orgs. (2011) — Just the Arguments: 100 of the Most Important Arguments in Western Philosophy. Oxford: Blackwell, p. 36.
[iv] O argumento supracitado não põe totalmente em causa a possibilidade da existência de Deus. Com efeito, abre‑se espaço lógico, designadamente, para um Deus que seja impessoal (por exemplo, o «motor imóvel» de Aristóteles).
[v] LACTÂNCIO, id., p. 588.
[vi] Veja‑se, por exemplo, a invocação de «espíritos maléficos» e de uma «depravação transmundial» por parte de um dos mais importantes filósofos teístas do século XX: PLANTINGA, Alvin (1974) — God, Freedom and Evil. Grand Rapids, Michigan: Eerdemans.
[vii] Cf. KANT, Immanuel (17811/17872) — Crítica da Razão Pura. 7.ª edição. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, pp. 597‑598 [A741/B769‑A742/B770].

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