sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Uma Leitura do «Cântico Negro» de José Régio



«Os artistas são, antes de mais, homens
que pretendem tornar-se inumanos.»


APOLLINAIRE


O estudo de qualquer obra literária, seja qual for o seu género, traz consigo a possibilidade de uma interpretação de ordem pedagógica. Admitindo-a sem mais, por agora, vamos desenvolvê-la a partir da análise do celebérrimo «Cântico Negro» de José Régio. Cumprir-se-á em três tempos o desenvolvimento da nossa reflexão: há-de corresponder ao primeiro uma tentativa de aproximação do fenómeno educativo com vista à ultrapassagem do plano em que o mesmo se dá como «evidente»; ao segundo, uma abordagem preliminar e «livre» do poema em causa; ao terceiro, por último, uma releitura do mais lido dos «Poemas de Deus e do Diabo» à luz do problema fundamental da existência humana: a educação.

I

Que deve entender-se por educação? Consultemos a etimologia: verifica‑se a presença de «ducere», que em latim significa «conduzir». Assim sendo, a educação não é senão a condução do homem. Mas o acto de conduzir implica saber «onde se está» e «para onde se vai». Por outras palavras: a educação pressupõe um princípio fundamental e uma finalidade última. A sua determinação exige que se responda à sequente questão:

— Por que razão o homem precisa de ser conduzido?

Isso resulta apenas do facto de ele não surgir enquanto tal, ou seja, enquanto homem. Com efeito, o homem só se faz homem no meio de outros homens. Sem a condução de outrem, portanto, a qual se cumpre em nome de um certo ideal, o homem nunca poderia vir a ser o que realmente é: o único ser cuja natureza está na sua história. É própria do homem a falta original de algo que lhe seja naturalmente próprio. A sua indeterminação nativa — a sua miséria à nascença — é, pois, o princípio fundamental que justifica a existência da educação, cuja finalidade última salta à vista: tornar o homem humano. Não o sendo imediatamente, refém do seu atraso inicial relativamente à humanidade, o homem tem na educação o «medium» da sua humanização, que o orienta para o destino que é o seu: realizar-se a si próprio. Quer isto dizer, todavia, que há certamente o perigo de que ele não se torne o homem que é, que é próprio do homem correr o risco não só de não ganhar, mas perder a sua condição humana. Está a inumanidade atrás de si, sem dúvida, nessa figura imediata, infante, quase límbica, mas igualmente à sua frente, porventura liberta pela imaginação de quem não sabe onde está nem para onde vai.

II

Parafraseando Freud, Sua Majestade o Eu — eis o herói do «Cântico Negro». Não por acaso, os primeiros ataques dirigidos contra a poesia de José Régio, tal como ele os relata no início do oitavo capítulo da Confissão dum Homem Religioso, salientam acima de tudo o seu egocentrismo, subjectivismo e aristocratismo. Desdobrado em personagem, mais próximo dos deuses do que do homem, opondo-se a uma sociedade que não o pode entender, o poeta exibe-se: orgulhoso, solitário, gigantesco; enfim, cultor mítico de um «pathos» da distância tipicamente nietzschiano. Amando profundamente a solidão dos desertos e das florestas virgens, com ironia contempla a mesquinhez de quem se deixa levar por qualquer autoridade socialmente instituída e por isso não se revolta, incapaz de voltar a si mesmo e de ser unicamente fiel a si próprio. Em conflito romântico com os outros (conflito entre o Eu e o Sobreeu, psicanaliticamente falando), em demanda da autenticidade, vive em constante revolta contra o automatismo da repetição — razão de ser da tradição — que sujeita a maioria a um anonimato despersonalizante, porque não está no mundo para simplesmente viver, mas para destruir e criar. Realiza o vate deste modo uma das formas supremas do homem revoltado, do homem que sempre volta a dar à humanidade o que ela sempre perde: a sua origem virginal, inumana, terra natal de toda a Loucura.

III

Por que motivo se revolta o poeta contra os pedagogos, isto é, contra aqueles que o querem conduzir? Porque a sua condução se faz em função do passado, reduzindo-se então à mera transmissão da herança cultural, aliás, simbolizada pelo «sangue velho dos avós». Querendo conduzi-lo para o lugar que lhe compete na magnífica engrenagem civilizacional, ilustrada pela antepenúltima estrofe, estão, por conseguinte, ao serviço da «domesticação» dos espíritos, tão‑somente apóstolos do que é «fácil»: o adquirido pela civilização, que é o resultado da condução do homem para a admissão de certas formas convenientes à vida em sociedade.

Recusando a educação como processo de adaptação à vida social, cujo principal motor é a imitação, o espírito do poeta — «facho a arder na noite escura» — revolta‑se, volta atrás e sopra para muito longe, livre de entraves «sublunares», na direcção do inumano, ou melhor, do que não é homem ainda, infante que rasga o ventre da Mãe, e dela se alimenta e alucina o alimento, primeira Miragem, primeiro poema do Mundo. Por não haver outra maneira de pagar a dívida que toda a alma contraiu com a indeterminação miserável da sua origem pedagogicamente recalcada, a glória do vate é a sua Loucura: criar desumanidade, novidade absoluta.

Mas tal crítica poética da acção pedagógica não nos levará a uma radical separação entre o Espírito e a Educação? Esta sem aquele é, por certo, como nos alerta Delfim Santos, «mecânico adestramento», mas o primeiro sem a segunda não constitui senão «fogo de artifício fugazmente a iluminar a escuridão que permanece».

Eurico de Carvalho

In «O Tecto»,

Ano XI, n.º 21,

Janeiro/1999, pág. 3.

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2 Leituras da Montr@:

Anonymous Anónimo disse...

Antes de mais, gostaria de felicitar o Professor Eurico de Carvalho pela criação deste agradável espaço e pela brilhante interpretação do “Cântico Negro” de José Régio.
Embora não conheça aprofundadamente a obra deste poeta vila-condense, nem seja uma especialista em análise poética, aprecio particularmente este Cântico.
Segundo G. Thibon, “Deus fez o homem…mas fê-lo o menos possível”, reafirmando assim a incompletude constitutiva do homem. Sendo assim, o homem não se pode tornar humano senão pela educação. O homem tem necessidade de ser educado, sem a educação o homem não seria humano, ela é uma condição de desenvolvimento antropológico.
Não deixa, por isto, de ser fascinante a forma como o eu poético se insurge contra a educação, contra o acto de outrem dirigir, modificar a sua vida, contra o “sangue velho dos avós”, chegando ao ponto de afirmar que a sua glória é “criar desumanidade”!
Sem dúvida, uma Loucura…

Filipa Lopes

P.S.: Felicito-o também pela excelente selecção musical do presente blog!

12:37 da manhã  
Blogger Eurico de Carvalho disse...

Filipa, agradeço a generosidade das suas palavras! Que esta montr@ receba mais visitas suas, eis o desejo que acalento enquanto amante desta praça pública: a blogosfera. Um abraço!

6:58 da tarde  

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