CENA DIDÁCTICA [IV]
FUNÇÕES OU MODALIDADES DE AVALIAÇÃO? EIS A QUESTÃO!
De acordo com Foucault (cf. «A Arqueologia do Saber»), é a teoria o destino ocidental da actividade cognoscitiva. Por outras palavras: a legitimação do discurso num contexto secularizante passa necessariamente pela sua cientificação. A este processo não é alheio, claro está, o discurso que hoje, num quadro pedagógico sofisticado, se faz sobre a avaliação, qualificando-a até, em última instância, como um tipo especial de investigação, confundindo-se assim, de um modo arbitrário, os domínios axiológico e epistemológico.
Aqui, enquanto professor de Filosofia, não pretendo senão, sumária e despretensiosamente, chamar a atenção para um dos sintomas de tal cientificação, ou melhor, da sua perversão: a abusiva multiplicação de entidades teóricas sem suporte fenomenológico. Trata-se obviamente da violação de um princípio de economia do pensamento: «entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem», ou seja, não é preciso multiplicar os seres sem necessidade. A «rasoira ockhamista» traduz, sem dúvida, uma exigência de simplicidade, à qual se submete, em particular, a formulação científica das hipóteses.
Que sirva de ilustração da falta de uso da «navalha de Ockham» no âmbito da pedagogia, cuja cientificidade é polémica, o seguinte exemplo: a proliferação discursiva de «tipos» de avaliação. Dela, aliás, fazem eco os diplomas legais, dos quais destaco o regime de avaliação dos alunos do Ensino Secundário (cf. Despacho Normativo n.º 338/93 de 29 de Setembro). Nele, no seu ponto doze, se distinguem três modalidades de avaliação: a formativa, a sumativa e a aferida. Sendo esta última da competência do Ministério da Educação, limitar-se-á o objecto de reflexão às restantes, cuja diferenciação, segundo a vulgata didactológica vigente, espelha com fidelidade a contraposição entre avaliação tradicional e moderna.
Não faz sentido, porém, a meu ver, falar de modalidades de avaliação, distinguindo-as com base em critérios relativos (tais como: tempo, técnicas, etc.), insusceptíveis, pois, de justificar uma diferença de natureza entre elas, tanto mais que se reconhece que a sua distinção é fruto de uma estratégia de renovação e alteração das finalidades atribuídas à avaliação dos alunos: facilitar e promover a sua aprendizagem, e já não certificar e seleccionar o produto resultante desse processo. Assim sendo, se queremos ser coerentes, há que discriminar funções da avaliação (sumativa, formativa, etc.), pondo definitivamente de lado a confusa e obscura terminologia tipológica. Continuar a utilizá-la é correr o risco de cair em contradições, das quais não se livram, por exemplo, João Boavida e Carlos Barreira, docentes da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Com efeito, a páginas tantas, num texto intitulado «Nova Avaliação: Novas Exigências» (e por eles publicado no sexto volume da Revista «Inovação», mais precisamente, no seu número seis de 1993), garantem que a avaliação sumativa e a formativa «são duas modalidades de avaliação distintas, que devem ser utilizadas em momentos apropriados e sem contaminações» (cf. pág. 99). Tão taxativa afirmação, no entanto, contradiz rotundamente o que tinha sido dito na página imediatamente anterior: «a função formativa da avaliação é também desempenhada por outras formas de avaliação». A isto, mais tarde, se acrescenta uma precisão suplementar: a «avaliação sumativa pode também desempenhar um papel essencial no aperfeiçoamento da prática educativa» (cf. pág. 100).
Mas se admitimos o seu contributo para a regulação do processo de ensino‑aprendizagem, isto é, se lhe atribuímos uma função formativa, com que razão podem os autores argumentar a favor da independência modal de tal avaliação? Absolutamente nenhuma. De facto, consoante o momento e o fim a atingir, não há avaliação que não possa assumir múltiplas funções. Além disso, a complementaridade funcional inerente à sua aplicação na aula, espaço por excelência da acção pedagógica, inviabiliza qualquer utilização susceptível de a subordinar mecanicamente a um esquema temporal rígido, em nome do qual, aliás, se insiste nessa fictícia modalização do processo de avaliação. Justificá-la com o recurso à individualização de certos procedimentos instrumentais, formais ou informais, é também inútil. Nem os novos paladinos da chamada «avaliação formativa» ignoram a impossibilidade de concretizar metodológica e tecnicamente a sua decantada especificidade.
A um deles, português, José Augusto Pacheco, de seu nome próprio, dou agora a palavra:
«A avaliação formativa não é, por assim dizer, um tipo de avaliação exclusivo que seja aplicado através de uma técnica concreta; é antes uma prática, que integra o princípio da avaliação contínua, que se aplica e coexiste com outras práticas avaliativas do aluno» [cf. pág. 130 de uma obra sua (publicada pela Porto Editora em 1994): A Avaliação dos Alunos na Perspectiva da Reforma — Propostas de Trabalho].
Ademais, num passo anterior da mesma obra, já se encontra o reconhecimento por parte de Pacheco, que se apoia em Gimeno e Abrecht (cf. pág. 99), de que o carácter formativo da avaliação em causa não resulta propriamente das técnicas concretas utilizadas, mas da intenção que preside à sua aplicação. Por conseguinte, não está em jogo um método: trata-se, sim, de uma atitude ideologicamente fundamentada.
Ao contrário do que poderá pensar o leitor desprevenido, não é esta uma mera querela terminológica, estritamente formal e escolástica. Funções ou modalidades de avaliação? Eis a questão cuja resposta, em prol de uma clareza conceptual, não pode deixar de ser a negação do segundo membro da alternativa. Que seja inversa, todavia, a posição dominante no universo discursivo da pedagogia contemporânea, isso compreende-se no quadro de uma vasta estratégia de alargamento do seu campo epistémico, e cujas implicações a nível institucional saltam à vista de toda a gente: transformações da organização universitária do espaço do saber decorrentes da criação das «ciências» que se dizem «da educação».
Por detrás da elevação axiológica da atitude formativa de avaliação à condição de singularidade tipológica, já com dignidade suficiente para ser então objecto de um estudo autónomo, está com certeza um duplo movimento: epistemologização da experiência pedagógica, por um lado; por outro, democratização do sistema de ensino. É neste contexto que há que compreender a «diabolização» da função sumativa da avaliação, à qual se dá, quando muito, o estatuto de mal necessário. Com vista à generalização do sucesso escolar, contrapõe‑se‑lhe um investimento numa crescente «tecnologização» do processo de ensino‑aprendizagem que ignora não só os limites da imaginação didáctica dos professores, mas também a heterogeneidade da motivação discente. Daí os perigos da «nova avaliação», para os quais, honestamente, chamam a atenção João Boavida e Carlos Barreira: «transferir, sem preparação, toda a sustentação do sistema educativo da avaliação sumativa para a formativa, pode criar condições para a degradação do sistema educativo e para o descrédito da escola e dos professores» (cf. op. cit., pág. 104). Entre a possibilidade e a realidade, como sabemos, diminui a cada passo bem intencionado a distância.
Eurico de Carvalho
In «O Tecto»,
Ano XIII, n.º 31,
Março/2001, pág. 7.
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