O 87 — OU O MONUMENTAL ATRASO DO CRONISTA!
Porto: 1988
O 87 não é um número qualquer. O utente do dito sabe‑o muito bem. (Pela facilidade das meias palavras, o leitor cá do burgo já deu conta com certeza de que estamos a falar desse bichinho metálico de quatro rodas que dá pelo nome de autocarro — ou «laranja» apenas, para os amigos.) Posto isto, sejamos, no quanto isso vier a jeito, sucintos e directos no assunto que nos traz a esta tribuna. Não é de crónica este tempo. E o espaço também é pouco. No entretanto permitido, porém, ser‑nos‑á perdoado dizer ainda, ao modo de conselho estival, um pouco de justiça e tanto, i.e., ironia q.b. — e corninhos ao Sol! Assim, neste princípio de Setembro («o mês eleito pelos cantores»), se quiser obter o ritmo cardíaco da aventura — a preços acessíveis! — não tem mais quê nem porquê para ficar
Prepare‑se! E adquira o melhor sorriso pronto‑a‑servir‑outrem. Os seus fusíveis queimados e amortecedores desarranjados — esqueça‑os; na verdade, temos um itinerário para si. (E não nos agradeça. Já, pelo menos.) Alimente‑se então de um regime monocórdico de ternura e soletre carinhosamente a sigla querida de toda a gente que gosta de estar em pé: S‑T‑C‑P. Feito isto, dirija‑se em hora‑de‑trânsito à Cordoaria. Ao entardecer, por volta das seis, coloque‑se de sentinela na celebérrima «bicha» do 87. Às sete e meia (depois de muita leitura suada e vistas impacientes da Torre numa atmosfera de irritação crescente: 50, 54, 93…): aleluia! Com ponto de exclamação — e tudo: lá vem ele!
Ele é o tal: o inefável 87. Para o motorista, o atraso, longe de ser uma circunstância, tem a altura de um cerimonial de longa data. Por isso mesmo, um ponto de honra. É uma espécie de filantropo o homenzinho do volante! Considera‑se o responsável pela alegria subitânea que brota no rosto das pessoas, pelo seu alívio intempestivo, ao verem‑no chegar, enfim, sorrateiro e autoritário, por entre o plano bucólico dos olhares (muito perto da cor dos verdes do jardim…).
O possível cliente desta história verdadeira, portuguesa e suave, suficientemente intrépido para se ter metamorfoseado em passageiro‑com‑destino‑a‑Pedras‑Rubras‑via‑87, estará então, no seu seguimento, pelo menos habitual, rodeado dos amorosos apertos (pouco cristãos!) do próximo, tentando a todo o custo manter a postura vertical característica de um bípede que se preze acima de tudo.
Autocarro em movimento, pois, mas não muito. A estreiteza do cenário portuense e a ciência de quem superintende nestas coisas do fluir do tráfego não dão para mais… Entre a Cordoaria e o Araújo, passando pelo Monte dos Burgos, a fita é a do costume: no interior, um campo/contracampo clássico, ou melhor, dialogado num bom vernáculo: o Sr. Condutor vs. os Senhores Passageiros; no exterior, um longuíssimo travelling lateral (semelhante ao exemplificado por Godard no filme Week‑End). Em câmara lenta, a acção desenrola‑se conforme o compasso (pouco imaginativo, é certo, embora atento) do bombardeamento de ondas de calor sobre o perfil democrático da mole. Realmente, quarenta e cinco minutos já se foram à vida! O resto — sabei‑lo vós! — é o complemento adequado nestas cenas de um quotidiano típico de uma urbe desurbanizada como a nossa.
No ínterim, o motorista acelerou. Pedras Rubras à vista, é vê‑lo num esforço voador de cumprir horário. Julgará ele trazer sardinhas na lata de conserva? E se por acaso o cliente, durante a conversa, teve a oportunidade única de se apropriar de um dos bancos da retaguarda, não lhe será dificultada, antes pelo contrário, a sensação marítima de navegar em mar alto. A excelência mental da agilidade ser‑lhe‑á exigida nessa prova.
Estrada do Aeroporto. Finalmente! O último passageiro (o possível cliente desta história verdadeira, portuguesa e suave) verifica a ossatura e olha o relógio; o motorista sorri. São horas de regresso. Aéreo, de preferência.
Eurico de Carvalho
P.S. — Tem toda a razão o leitor! A crónica viu com alegria a luz do dia, mas com dezoito anos de atraso. Hoje temos o metro, do qual se dizia (e não há muito!) «não avançar sequer um centímetro». Quem diria? Tempus fugit!
In «O Tecto»,
Ano XVIII, n.º 55,
Setembro/2006, pág. 5.
1 Leituras da Montr@:
Parabéns pela crónica. Está muito bem escrita e com muito humor.Outra coisa não seria de esperar de ti.
Agora deixa-me dizer-te: não te imagino, por mais que tente, no 87!! Então não sabias que havia o comboio que fazia o mesmo percurso em 25 minutos!!
Eurico, Eurico, em que andarias tu a pensar?
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