CARTA DE CESÁRIO A UMA SENHORA VÃ QUE O DESLUMBRA (ESCRITA POR OUTREM EM SUA HOMENAGEM)
Vila do Conde, Dezembro de 2000
Milady:
É perigoso contemplá‑la, quando passa, aromática e normal, por entre os versos do Sr. Verde, empregado no comércio, que tudo achava alegremente exacto. É vê‑lo ao balcão da loja de ferragens paterna, agora livre de clientes de barba agreste, a descrevê‑la na sua passagem, cujo nevado e lúcido perfil acabou por ter a medida inteira nesses alexandrinos iluminados pelo futuro: o brilho do cinematógrafo.
Eu vejo‑a caminhar deste lado da leitura, fleumática e irritante: britânica — e é quanto basta. E muito embora tu, burguês, me não entendas, olha como ela vai, Inigualável, na direcção inútil do querer que me solta a língua original. E isso é quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra por mim passa com firmeza e música no andar. De corpo tão completo, lembra a Moda supérflua e feminina com que sonham, sem o saber, as burguesinhas do Catolicismo.
Enquanto os querubins do lar flutuam nas varandas de quem leva uma existência de cristal, atraso honestamente o olhar na Elegante que em mim desperta um desejo absurdo de sofrer. Ah, não poder pintar com versos magistrais, salubres e sinceros — a sua imagem em movimento! Mas não… Sou prático: sei só desenho de compasso e esquadro. E eu, que medito um livro que exacerbe, quisera que o real e a análise mo dessem.
E é neste rude mês que não consente as flores — Dezembro enérgico, sucinto — que de longe sigo a Alemã de Luxo que me agrada. Entretanto aguardo, no intervalo urbano da noite, a Hora certa da raça ruiva do Porvir.
Agora vivo como um monge no bosque das ficções — e busco a moderna e fina arte. E porque não há questão que mais me contrarie do que escrever em prosa, apuro‑me em lançar para a posteridade um folhetim de versos que hoje vi recusado na praça das letras.
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas
Impressas em volume?
Eurico de Carvalho
In «O Tecto»,
Ano XIII, n.º 30,
Janeiro/2001, pág. 7.
P. S. — Em todo o texto, como é bom de ver, acotovelam‑se vários versos de Cesário Verde, o maior poeta português do século XIX. Que o leitor se divirta com a sua detecção!
Etiquetas: PROSA
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