sábado, 23 de setembro de 2006

DESABAFOS [V]

Quem tenha visitado nestes últimos dias a Paróquia das Letras da lusitana ágora mediática, na qual pululam avenças ad æternum de fazedores diários e hebdomadários de ilustres e salubres opiniões, terá sido certamente surpreendido pela douta enxurrada de juízos finais acerca da essência do Islão. Do alto das cabeças mais pensantes do país (Pereiras, Fernandes e tutti quanti), tudo o que merece ser dito sobre o assunto só pode ser objecto de recondução definitiva à bem‑aventurada sentença categórica: o islamismo é, por definição, o caldo de cultura do terrorismo e do fundamentalismo da era da globalização. Tendo ela aparentemente o peso inabalável do chumbo e o brilho superior do oiro de lei, haverá alguém capaz de a questionar? Ou melhor: poderá fazê‑lo sem ser imediatamente acusado de complacência para com o pior das teses dos seguidores de Maomé? Não seria ele, por fim, se o fizesse, o coveiro dos ideais do Ocidente?

Assumindo eu, porém, a consciência da minha ignorância, proponho apenas que tenhamos a honestidade intelectual de substituir o mundo das ideias feitas por algumas viagens no tempo. Imaginemos Córdova, por exemplo, em pleno século de Averróis. O viajante teria a oportunidade de ver uma civilização no seu apogeu, cultivando a tolerância e o saber. Em 1135, nessa cidade da Andaluzia, nasceu Maimónides, pensador judeu e talmudista, tendo sido, pois, não só contemporâneo do maior filósofo do Islão, mas também seu conterrâneo. E se dele quero falar, a razão é simples: autor de um dos monumentos do pensamento judaico, o Guia dos Desamparados, não podemos ignorar o facto de o ter escrito em árabe. Eis uma prova soberba de espírito cosmopolita e diálogo civilizacional! É verdade que os tempos que se seguiram foram sombrios, verificando‑se a decadência de toda a cultura arábica. Tal ter‑se‑á devido, em parte, pelo menos, à hegemonia política dos Turcos Otomanos.

Devemos empreender uma nova viagem a Espanha. Trezentos anos mais tarde, dá‑se ao nosso viajante a possibilidade de assistir a um auto‑de-fé em Sevilha. Perante a crueza do espectáculo e das perseguições do Santo Ofício [sic], não diria o observador do cristianismo dos Reis Católicos o mesmo que hoje tantos dizem acerca da religião islâmica?

À luz das lições da História, a conclusão impõe‑se: não há religião que possua o monopólio da violência; nenhuma, aliás, poderá apresentar‑se perante Deus de mãos limpas. De Tomás de Torquemada a Bin Laden, não cabe aqui a lista dos que, de uma forma infame, se serviram da espada para cortar a cabeça do «infiel». É com à‑vontade espiritual que o digo, i.e., enquanto agnóstico, condição de quem se vê muito longe da estrada de Damasco.

Eurico de Carvalho

In PÚBLICO (26/9/2006): p. 4.


3 Leituras da Montr@:

Blogger Eliane Alcântara. disse...

Lentamente a aprendizagem
alcança mais espaço quando
estou aqui.
Um beijo.

8:52 da tarde  
Blogger Poesia Portuguesa disse...

Excelente texto.
Gostei de ler.

8:20 da manhã  
Blogger Eurico de Carvalho disse...

Agradeço as suas palavras. Seja sempre bem-vinda a esta Montr@!

8:19 da tarde  

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