sexta-feira, 27 de outubro de 2006

O DISCURSO MÍTICO DA SOCIEDADE DE CONSUMO

Quando uma sociedade se define, como é o caso da ocidental, pelo consumo praticamente ilimitado de bens e serviços, o mais das vezes supérfluos, o objecto acaba por ganhar um estatuto mágico. E ganha-o na medida em que é invocado pela fala da publicidade. Esta é, com efeito, um regime discursivo vocacionado para dar metaforicamente prestígio ao objecto e, por consequência, de uma forma metonímica, prestigiar quem o consome. Que é o prestígio? Propriamente dito, não é senão a ilusão dos sentidos produzida por artes mágicas. Como se constrói publicitariamente essa ilusão? Através dos processos já referidos implicitamente: a condensação e o deslocamento. Se fosse apenas a moldura de um quadro, o anúncio não seria eficaz. Sendo o modo pelo qual se condensam no produto anunciado, transcendendo‑o claramente, os elementos necessários para a constituição de um cenário eufórico, pode cumprir assim o seu papel anónimo de feitor de sonhos. A compra do produto satisfaz, por conseguinte, não uma necessidade, mas um desejo: a posse de um mundo onde a dor não tenha pátria. É óbvia a inadequação que se verifica entre a causa (a aquisição do bem de consumo) e o efeito (a conquista da felicidade). Estamos, pois, perante uma causalidade mágica. Em suma: o prestígio é metaforicamente condensado no objecto e metonimicamente deslocado para o sujeito, o qual, destarte, se prestigia, isto é, adquire importância social.

A estratégia publicitária, qualquer que ela seja, tem necessariamente uma natureza retórica resultante da sua função: persuadir. Mas a persuasão em causa, por ter em vista o máximo denominador comum, não se apoia na demonstração, ainda que dialéctica, das qualidades eventuais do produto em promoção. Limita-se a mostrar os efeitos socialmente reconhecidos que resultam da sua compra. Daí que, enquanto técnica inscrita na lógica do mercado, a publicidade, sempre em nome da eficácia comercial, leve a cabo a redução, epistemologicamente discutível, da persuasão à sedução. Ora bem, seduzir (em latim: «seducere») significa originalmente «levar para o lado». Esta curiosa indicação etimológica permitir-me-á estruturar o que se segue em função da resposta à tripla questão que aqui se levanta:

1) Que se deve entender publicitariamente por «levar»?

2) Quem é «levado» pela publicidade?

3) Para que lado «se leva» todo aquele que se deixa «levar» por ela?

Que sentido se dá vulgarmente a «levar»? Segundo os dicionários, tal verbo, fundamentalmente transitivo, admite os seguintes sinónimos: transportar consigo; conduzir; retirar; afastar; guiar; induzir; tornar dócil; exigir como paga; dar cabo de; aproximar; aplicar; projectar; passar (a vida, o tempo); seguir rumo; caminhar; enganar; ludibriar. Como se vê pelos meus sublinhados, são quase metade do total os termos que, do ponto de vista que defendo, directa ou indirectamente se articulam com a actividade do publicitário. E isto porque, sem dúvida, todos eles apontam para a sua dimensão agológica. Esclarecê-la exige que se dê uma resposta à segunda pergunta.

Quem é «levado»? Antes de responder, é preciso que fique claro que a identificação do destinatário da mensagem publicitária não pode camuflar a diferença, iniludível, entre o receptor da informação e o consumidor do que nela se anuncia. Por outras palavras: se é um facto que somos todos, em princípio, consumidores de anúncios, já o mesmo não se verifica no tocante aos objectos que neles se encontram. Isto quer dizer que a dissemelhança ontológica que separa a imagem da coisa adquire aqui um valor político, o qual é recalcado pela tentativa capciosa de confundir magicamente os dois planos: o simbólico e o material. Além do que, a difusão universal de um imaginário estandardizado, possibilitado pelo desenvolvimento da tecnologia audiovisual, não anula, mas elide apenas, as contradições verificáveis no terreno geográfico, económicas e outras. Tudo isto se traduz psicologicamente na acumulação diária de frustrações, pois não é impunemente (tendo em conta, por exemplo, o referido estatuto «esquizofrénico» do destinatário da mensagem publicitária) que o nosso inconsciente se deixa colonizar por automóveis desportivos e viagens às ilhas dos Mares do Sul. Transforma-se assim o mundo num bilhete‑postal ilustrado. Somos insistentemente convidados para uma visita a esse reino cor-de-rosa. Basta pagar o bilhete, cujo preço, se quisermos, em nome da sã democratização do acesso à alegria geral, até poderá ser liquidado em suaves prestações mensais. E é por ser açucarado o totalitarismo contemporâneo que ele nos leva docilmente. Quem se deixa levar? A alma, ou melhor, os fantasmas que nela fazem ninho, que nos obrigam a sonhar a cores e em duas dimensões. Não são nossos; são, sim, parasitas do desejo, que é sempre do Outro. Mas hoje já não é senão a máscara do prazer do Mesmo, essa figura triste que resulta da ânsia dialéctica do reconhecimento universal. Por isso nos levam docilmente, quer queiramos, quer não. A agologia publicitária manifesta‑se, portanto, como uma psicagogia. De que natureza? Encontrá-la-ei com a resposta à última questão.

Para que lado é «levada» a alma? Para onde não há contradição, ou seja, para fora do mundo. Ao cabo e ao resto, talvez seja o imaginário essa exterioridade apenas visível do interior do desejo que temos e não somos, porque se revela induzido por outrem: o agente anónimo da publicidade. E como este discurso pretende colmatar a falta do ser pelo ter, as consequências perversas de tal psicagogia desafiam a eficácia de qualquer crítica que se queira também terapêutica. Elevando a alma aos píncaros egocêntricos do prestígio através da idealização do consumo, faz deste um modo de vida: o consumismo. Mas como o ideal de muitos se realiza somente no quotidiano de alguns, torna-se até desnecessário realçar, por ser evidente, a dimensão ideológica da publicidade. Enquanto psicagogia de massas, ou seja, demagógica, incrementa o culto «totémico» da imagem («de marca», claro está...). Sem ela, aliás, não poderia passar o capitalismo hodierno. E a verdade é que vivemos alegremente, tenhamos disso consciência ou não, no interior da Caverna de Platão.

Eurico de Carvalho

In «O Tecto»,

Ano XI, n.º 23,

Julho/1999, pág. 11.

[Primeira publicação: In «Jornal de Notícias» de 2 de Agosto de 1996, pág. 32.]

2 Leituras da Montr@:

Blogger Poesia Portuguesa disse...

Passei para ler-te, mas confesso que não li tudo. Tenho os olhos cansados a esta hora.
Prometo voltar para continuar a leitura.
Entretanto, deixo um abraço e bom fim de semana ;)

2:03 da manhã  
Blogger Eurico de Carvalho disse...

Que a leitura desperte em ti reflexões que possas partilhar com todos os visitantes desta montr@ ! Um abraço!

12:03 da tarde  

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