quarta-feira, 13 de junho de 2007

EDITORIAL [IV]

Falar de heroísmo é correr o risco de ser mal entendido. O espírito do tempo, assumidamente hedonístico e democrático, mantém sob suspeita a figura aristocrática do herói, pelo facto de ela ter sido vítima de um rapto ideológico. Com efeito, ainda persiste a memória do seu uso nacionalista e fascístico. Na consciência do cidadão comum, os heróis, por definição, são os que morrem em nome de um ideal que se pretende superior à vida. Neles, a vontade domina tudo, devorando até o medo da morte. Hoje, porém, não temos heróis — dir‑se‑á —, mas apenas vedetas, que são instrumentos do capricho. (Bem podemos avaliar, pela respectiva direcção do olhar, a distância entre os dois tipos de humanidade: num caso, o primeiro, para cima, querendo respirar o ar difícil da montanha; no segundo, para baixo, em busca do aplauso fácil das massas. De um lado, a tragédia; do outro, a comédia.) Parafraseando uma personagem cujo nome não quero referir, busca‑se esfomeadamente a fama de quinze minutos e despreza‑se a eternidade, a qual lembra vagamente um cemitério de espectros: não suscita o desejo de aparecer sob o ângulo da luz mediática e intermitente dos holofotes da actualidade. Esta é, sem dúvida, a palavra‑chave da Época Contemporânea. (A notícia tomou o lugar do mito.) Donde o receio patológico da multidão: estar fora de moda! Daí a apoteose do imediato: o culto das experiências, novo negócio do século XXI! Ser herói, todavia, há‑de significar, pelo menos, a coragem de viver para além do instante.

Tudo isto se concatena: o fim da literatura e o triunfo do jornalismo. O reino da tagarelice não poderia suportar o perfil austero da subjectividade heróica, que sempre anseia romper com o conformismo egossintónico. E fá‑lo em nome de uma ideia maior do que o pequeno eu que a publicidade alimenta. Só chafurda em tal pântano egóico, de facto, quem tenha na chinela a medida do real. Numa outra instância, aliás, ter‑se‑á perdido a lição de Epicuro: a preponderância dos prazeres de longa duração (catastáticos, isto é, susceptíveis de um prolongamento indefinido) sobre os efémeros, ou melhor, cinemáticos, já que são sensíveis e inconstantes.

«Devido ao progressivo domínio do meio ambiente, o homem moderno, por força das coisas, deslocou o ‘estado do mercado’ da economia prazer‑desprazer no sentido de uma hipersensibilidade crescente a respeito de todas as situações de estímulo negativo, ao mesmo tempo que a sua capacidade de prazer se foi embotando. Semelhante situação, por uma série de razões, origina consequências deletérias» (Konrad Lorenz). — Por exemplo: a delerricção da existência sob a aparência do tédio, a multiplicação dos comportamentos de risco gratuitos, a celebração mediática da vulgaridade e o culto do sucesso a todo o custo. O discurso do famoso etólogo austríaco tem toda a pertinência. É neste contexto histórico‑cultural que se compreende a emergência do vedetismo, sucedâneo pseudodemocrático do heroísmo. Entre os heróis de Homero e as vedetas de Hollywood abre‑se um abismo, cuja profundidade o cinema ilustra de uma forma tremendamente patética, quando Aquiles «de pés velozes» aparece, por fim, no ecrã gigante — e começa a falar inglês.

Eurico Carvalho

In «Jornal dos Arcos», n.º 5 (Junho de 2006), pág. 2.


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