sábado, 19 de janeiro de 2019

A HETERODOXIA DAS «VIAGENS» DE AMORIM COSTA


Deste livro, o título, antes de mais, remete-nos — aparentemente — para o universo garrettiano. Dizemo-lo bem: aparentemente. Afinal, sobrevém, entre a obra de Amorim Costa (Viagens pela minha terra) e a de Almeida Garrett (Viagens na minha terra), toda a distância que resulta da divergência de duas formas de viajar: a que toma como horizonte primeiro o espaço psíquico (psicossexual, diria Freud) do Eu — e a que se lhe opõe paradigmaticamente, ou seja, que privilegia, acima de tudo, a cena do Mundo (mais precisamente, a paisagem fratricida da realidade portuguesa de Oitocentos). Não quer isto dizer, todavia, que não possamos traçar certas semelhanças entre elas. Desde logo, são ambas «inclassificáveis», porquanto se furtam à tipologia dos géneros literários. Além disso, é-lhes comum a coloquialidade da linguagem, à qual não será alheia, por outro lado, a constante interpelação do leitor. Tais similitudes, porém, não podem camuflar as suas diferenças mil (estilísticas — e outras), de que o uso opulento das reticências, por exemplo, nem sequer escapa a um olhar desprevenido. Mas vamos por partes.
Para ilustrar a natureza psicossexual do espaço psíquico em que se desenrolam, de preferência, os roteiros do Autor (fisicamente circunscritos aos quatro mil metros que ligam a ponte de Retorta ao largo de Santa Luzia), basta atentar num tema que atravessa obsessivamente a sua escrita: o celibato obrigatório dos padres católicos. Sabemos que se trata de um cânone disciplinar do rito latino, remontando ele, pelo menos, aos Concílios de Latrão. Em pleno século XI, aliás, era ainda habitual, como é sabido, o casamento dos membros do clero, cuja excomunhão só se torna patente, de facto, com a Reforma Gregoriana. Ora, de acordo com o Autor, que se desnuda corajosamente, não estamos perante, de modo algum, uma verdade evangélica. Do seu ponto de vista, absolutamente heterodoxo, a agamia eclesiástica, enquanto instrumento do poder patriarcal da Igreja de Roma, — que evita, ademais, a patrimonialização privada dos seus bens, — não se se configura senão como o fruto serôdio de uma visão sacrificial do cristianismo.
Nele, em suma, a problemática religiosa confunde-se — autobiograficamente — com a questão social. Com efeito, a crença em Deus emerge cristãmente como a garantia inconsútil da igualdade entre os homens. Mas o fiel depositário dessa garantia é o homem solidário, i.e., o homem que o Autor sempre quis ser. Por isso mesmo, se «o Reino de Deus», como se lê num dos evangelhos sinópticos (Lc 17, 21), está entre nós, o seu verdadeiro nome, segundo ele, só pode ser a solidariedade, cujo espírito, quando sopra, alimenta a obra. Consequentemente, cabe‑lhe a esperança (cristã, com certeza) de que o seu sopro não seja mero flatus vocis, instituindo-se, pelo contrário, como o autêntico motor da História: a «Utopia da Fraternidade Universal».  
Eurico de Carvalho

(In O Tecto. Vila do Conde: janeiro de 2019, nº 94, p. 3.)


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