A HETERODOXIA DAS «VIAGENS» DE AMORIM COSTA
Deste
livro, o título, antes de mais, remete-nos — aparentemente — para o universo
garrettiano. Dizemo-lo bem: aparentemente.
Afinal, sobrevém, entre a obra de Amorim Costa (Viagens pela minha terra)
e a de Almeida Garrett (Viagens na minha terra), toda a distância
que resulta da divergência de duas formas de viajar: a que toma como horizonte
primeiro o espaço psíquico (psicossexual, diria Freud) do Eu — e a que se lhe
opõe paradigmaticamente, ou seja, que privilegia, acima de tudo, a cena do
Mundo (mais precisamente, a paisagem fratricida da realidade portuguesa de
Oitocentos). Não quer isto dizer, todavia, que não possamos traçar certas
semelhanças entre elas. Desde logo, são ambas «inclassificáveis», porquanto se furtam
à tipologia dos géneros literários. Além disso, é-lhes comum a coloquialidade
da linguagem, à qual não será alheia, por outro lado, a constante interpelação
do leitor. Tais similitudes, porém, não podem camuflar as suas diferenças mil
(estilísticas — e outras), de que o uso opulento das reticências, por exemplo,
nem sequer escapa a um olhar desprevenido. Mas vamos por partes.
Para
ilustrar a natureza psicossexual do espaço psíquico em que se desenrolam, de
preferência, os roteiros do Autor (fisicamente circunscritos aos quatro mil
metros que ligam a ponte de Retorta ao largo de Santa Luzia), basta atentar num
tema que atravessa obsessivamente a sua escrita: o celibato obrigatório dos
padres católicos. Sabemos que se trata de um cânone disciplinar do rito latino,
remontando ele, pelo menos, aos Concílios de Latrão. Em pleno século XI, aliás,
era ainda habitual, como é sabido, o casamento dos membros do clero, cuja
excomunhão só se torna patente, de facto, com a Reforma Gregoriana. Ora, de
acordo com o Autor, que se desnuda corajosamente, não estamos perante, de modo
algum, uma verdade evangélica. Do seu ponto de vista, absolutamente heterodoxo,
a agamia eclesiástica, enquanto instrumento do poder patriarcal da Igreja de
Roma, — que evita, ademais, a patrimonialização privada dos seus bens, — não se
se configura senão como o fruto serôdio de uma visão sacrificial do
cristianismo.
Nele,
em suma, a problemática religiosa confunde-se — autobiograficamente — com a
questão social. Com efeito, a crença em Deus emerge cristãmente como a garantia
inconsútil da igualdade entre os homens. Mas o fiel depositário dessa garantia
é o homem solidário, i.e., o homem que o Autor sempre quis
ser. Por isso mesmo, se «o Reino de Deus», como se lê num dos evangelhos
sinópticos (Lc 17, 21), já está entre nós, o seu verdadeiro
nome, segundo ele, só pode ser a solidariedade,
cujo espírito, quando sopra, alimenta a obra. Consequentemente, cabe‑lhe a
esperança (cristã, com certeza) de que o seu sopro não seja mero flatus vocis, instituindo-se, pelo
contrário, como o autêntico motor da História: a «Utopia da Fraternidade
Universal».
Eurico de Carvalho
(In O
Tecto. Vila do Conde: janeiro de 2019, nº 94, p. 3.)
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