segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

DEFESA DA TESE DE DOUTORAMENTO






11 DE DEZEMBRO DE 2018, PELAS 15H30
ANFITEATRO NOBRE DA FACULDADE DE LETRAS DO PORTO

Ex.mo Sr. Professor Doutor José Francisco Preto Meirinhos,
Ex.mo Sr. Professor Doutor António Pedro Couto da Rocha Pita,
Ex.mo Sr. Professor Doutor Eduardo Aníbal Pellejero,
Ex.ma Sr.ª Professora Doutora Paula Cristina Moreira da Silva Pereira,
Ex.ma Sr.ª Professora Doutora Maria João Couto,
Ex.ma Sr.ª Professora Doutora Maria Eugénia Morais Vilela:

Antes de mais, quero agradecer a Vossas Excelências a generosidade com que disponibilizaram tempo e atenção para a leitura da tese que, aqui e agora, me cabe defender. É também este o momento em que me apraz agradecer — muito especialmente! — à Ex.ma Sr.ª Professora Doutora Eugénia Vilela pela superior inteligência da sua orientação. Naturalmente, todos os defeitos que ainda permaneçam são da minha inteira responsabilidade; quanto aos méritos que este estudo eventualmente tenha, não os teria, sem dúvida, sem a sábia, atenta e paciente intervenção de Vossa Excelência.
Nesta defesa, pretendo evidenciar, desde logo, a motivação básica da minha investigação e o seu objetivo fundamental. Além disso, sem descurar o seu contexto histórico‑filosófico, farei uma brevíssima descrição do estado da arte e, ainda, da metodologia que regulou a presente abordagem do corpus debordiano, justificando‑a concomitantemente. Por fim, após a apresentação sumária dos conteúdos e conclusões, hei de sugerir a abertura de algumas perspetivas de trabalho futuro.
Penso que não será de somenos invocar o motivo subjacente à minha escolha temática. Com efeito, o ato de escolher, por definição, não é neutro nem inocente. Assim, se elegi a obra de Guy Debord como objeto de estudo, isso deveu‑se, por certo, à consciência que tenho do exercício do filosofar. Ora, por muito audível que ainda seja, pelo vulgo, o riso da criada de que nos fala Platão, no Teeteto[1], o filósofo não é, de modo algum, alguém que tenha os pés nas nuvens ou, se preferirem, um nefelibata. Pelo contrário, sendo um homem do seu tempo, nele mergulha as raízes da sua reflexão, cujo movimento intrínseco, no entanto, o eleva acima do sensível. Mas este movimento intelectual não é gratuito nem vazio, tanto mais que a procura do inteligível se faz sempre em nome da inteligência do mundo em que vivemos — e no qual, de resto, o espetáculo, pela sua omnipresença, se constitui como um fenómeno incontornável da nossa época.
Embora seja um facto que o nome de Guy Debord ainda está longe de ser uma referência habitual da maioria das enciclopédias e histórias da Filosofia, certo é que a sua obra, do ponto de vista de uma hermenêutica da contemporaneidade, i.e., que toma o presente como um problema histórico, bem merece ser lida. Ora, à luz de de uma crítica do presente, torna‑se manifesto o facto iniludível de a Arte e a Revolução, enquanto práticas de rutura criativa, estarem em crise. Sendo indispensável, todavia, a prova do valor filosófico da obra de Guy Debord, enquanto desígnio primário deste estudo, impõe‑se, para o efeito, o projeto de uma revalorização teórica do seu legado. Como Debord recusou simultaneamente a estetização da política (a atitude histérica dos fascistas) e a politização da estética (a obsessão totalitária do estalinismo), temos de ter em mente o seu contexto histórico‑filosófico, ou seja, a reanimação anarcomodernista da teoria crítica, a qual se faz à margem, por outro lado, de muitas das obras que já se escreveram sobre Debord. Padecendo, acima de tudo, dos defeitos endémicos da literatura psicologista, esses livros ilustram uma paisagem intelectual desanimadora, i.e., que não faz justiça ao pensamento de Guy Debord.
Por isso mesmo, são adversos a todo o psicologismo os três princípios que regeram metodologicamente a análise da obra de Guy Debord, a saber: um princípio histórico‑filosófico, um princípio estratégico e um princípio hermenêutico.
De acordo com o princípio histórico‑filosófico, há que integrar o pensamento estético‑político de Guy Debord, por força da sua ascendência, no quadro do chamado «marxismo ocidental» (e em cujo contexto merece destaque a obra‑prima do jovem Lukács, a saber: História e consciência de classe). Impõe‑se o destaque em função da relação estrutural que se pode estabelecer entre Lukács e Debord, quer sob a perspetiva da génese da filosofia de Guy Debord quer sob a da sua interpretação. Com a crítica do espetáculo, com efeito, que se opõe ao «pensamento único» vigente, Debord segue a via de Lukács, porque decide tomar o presente como um problema histórico. Daqui resulta — naturalmente — a rejeição do historicismo marxista, de que é exemplo cabal o Manifesto Comunista.
Quanto ao princípio estratégico, ele exige que não se faça da vida a medida da obra. Por outras palavras: trata‑se de um princípio que suporta um programa de investigação que recusa uma abordagem biográfica das ideias de Guy Debord. Foram os textos, por conseguinte, e não os atos, que houve que interrogar criticamente. Contudo, a adoção desta posição metodológica não impediu a articulação entre os dois polos, tanto mais que se procedeu à discussão das ideias de quem disse que tinha vivido exatamente como pensava que se deveria viver.
À semelhança do princípio estratégico, é também antirromântico o princípio hermenêutico, visto que, em relação à interpretação da obra, se recusa a ideia de que seja o seu autor o superior agente. (Evitou‑se assim a falácia intencional.) Sob a influência metodológica que resultou da aplicação dos princípios estratégico e hermenêutico, assumiu‑se a convergência interpretativa de duas estratégias de leitura da herança de Guy Debord: primeiramente, rejeitou‑se o «romantismo» inerente à preponderância da vida sobre a obra; e, em segundo lugar, não se acolheu a ideia de que o autor fosse o seu melhor intérprete. Em boa verdade, a metodologia não podia ser senão analítica, tanto mais que se teve unicamente em conta a matéria das palavras, ainda que oriundas, nalguns casos, de certos filmes. Efetivamente, a produção debordiana transborda os limites da escrita, abarcando, de igual maneira, o mundo das imagens. No entanto, o corpus motivador desta análise do pensamento de Guy Debord não transcendeu o universo verbal.
Além desses três princípios metodológicos, cuja articulação se subordinou à hipótese de que existe — em todo o pensamento de Guy Debord — uma unidade programática e revolucionária, fez-se um uso sistemático da técnica do cotejo. Na realidade, é a própria obra debordiana que nos convida a compreendê‑la nesses moldes comparativos. Assim sendo, as constantes comparações a que recorri, envolvendo Debord e as figuras maiores da cultura ocidental, tão‑somente corresponderam a duas necessidades: (i) fazer jus à natureza multiforme da obra de Guy Debord; e (ii) tornar visível o espaço em que se move habitualmente o pensamento do autor d’A sociedade do espetáculo. E nada disto é de menos, quando urge revalorizar teoricamente o seu espólio, pelo qual deve passar todo o englobamento compreensivo do século XX. No entanto, da aplicação de tal técnica pode advir a impressão de que estamos perante alguns anacronismos. Mas trata‑se de uma mera aparência. Como é natural, não são os autores que eu convoquei que dialogam diretamente com Debord. (Se assim fosse, o que seria absurdo, caber‑me‑ia, de facto, todo o ónus de uma grave inconsequência: a produção avant la lettre de «antidebordianos» e «debordianos».) À convocatória, no entanto, apenas preside o diálogo — intertextual — que entretece inúmeras diferenças e semelhanças. Por isso mesmo, não se pretende, é certo, «debordianizar» o pensamento anterior a Guy Debord.
No que diz respeito aos seus conteúdos, a tese reflete a convicção de que é ilegítima a redução da bagagem filosófica de Guy Debord a um único livro, a saber: A sociedade do espetáculo. Trata‑se de uma falsa imagem da sua obra. Nela assenta, de resto, um obstáculo à compreensão da radicalidade do seu programa estético‑político, no quadro do qual são vectorialmente convergentes a subjetivação e a revolução, cuja divergência, pelo contrário, o pós‑modernismo pretende comemorar. Ora, tendo como ponto de partida a discussão da origem estética da modernidade, a investigação desenvolveu‑se em três partes: «A Superação da Arte», «À Procura da Revolução» e «A Crítica do Espetáculo». Correspondendo a primeira parte à tentativa de encontrar a «passagem do Noroeste» de uma nova civilização, anticapitalista e lúdica, cujo paradigma é a máquina de reinvenção poética do quotidiano a que Debord chama situação, coube a essa parte, em particular, o desdobramento e problematização do conteúdo situacionista da cultura. Das suas limitações também se deduziu a acusação, prendendo‑se as mesmas com a plena ausência, de raiz subjetivista, de uma reflexão pedagógica e epistemológica sobre a ciência. Mas neste contexto civilizacional (com vista à articulação da primeira parte com a segunda) levantou‑se precisamente o problema de saber como conciliar, em Debord, a ideia de uma abolição do trabalho, em prol do jogo, com a defesa do proletariado na sua qualidade de único e verdadeiro sujeito revolucionário. Nessa conciliação, naturalmente, desempenha um papel decisivo a reconfiguração situacionista do agente histórico. Aí se assimila à condição proletária, não lhe dando lastro ontológico nem sociológico, todo aquele que perdeu o controlo da sua própria vida. Como aqui confluem as correntes estética e política do situacionismo, interrogou‑se expressamente Debord acerca da coerência estratégica do seu projeto de transformação social. Como esta pressupõe, por sua vez, uma exigência científica, i.e., a exigência de uma teoria geral da sociedade, essa mesma interrogação culminou numa avaliação da crítica do espetáculo, à qual correspondeu a terceira parte da tese. Eis, finalmente, o âmbito em que se discutiu o paradoxo resultante da desvalorização debordiana da relevância cultural da ciência e da concomitante pretensão à cientificação do discurso social. Para a sua resolução, Debord assume a teoria crítica como uma práxis que não se deixa reduzir a um mero artefacto intelectual. Tem por objetivo a transformação do mundo. Ora, a «tomada de posse da história», i.e., a superação da «pré‑história da sociedade humana», surge como um ideal normativo, pois é, em si mesmo, alheio à cientificidade discursiva. Neste sentido, Debord rejeita a pseudocientificação do suporte teórico da luta anticapitalista, i.e., do marxismo, com o consequente repúdio da sua versão estruturalista.
Em conformidade com os três grandes núcleos temáticos que estruturaram a tese que aqui se apresenta — a arte, a revolução e o espetáculo —, impõe‑se um balanço final que recolha os resultados da investigação. Para o efeito, confrontou‑se Debord com a sua herança. Em pleno século XXI, tudo aponta para a existência de um triplo fracasso: (i) o projeto situacionista de superação da arte não foi bem-sucedido, duplicando, destarte, o insucesso do surrealismo; (ii) a revolução proletária não se fez ou, pelo menos, falhou o seu alvo, i.e., o comunismo; e (iii) a própria crítica do espetáculo se espetacularizou. À tríplice falência corresponde o império das seguintes estâncias da nossa condição contemporânea: (i) esteticamente, a sociedade vive o seu «momento egípcio», i.e., a moda da musealização e da patrimonialização; (ii) do ponto de vista económico‑político, ainda impera a ideologia que remonta à longa viragem hayekiana do último quartel do século XX; e (iii), por fim, já num plano histórico‑filosófico, sofremos o efeito anestesiante do pós‑modernismo. Mais precisamente, podemos assinalar a presença das ocorrências concomitantes, a saber: (i) avança a reificação, de que a situação pretende ser o contraponto revolucionário; (ii) desrealiza-se, em prol do «capitalismo selvagem», a «hipótese comunista»; e (iii) revoga‑se, em nome da «destruição da história», a epopeia da humanidade, i.e., a grande narrativa da emancipação. Como é possível compaginar tal diagnóstico — perguntar‑se‑á — com a ideia de que a obra de Guy Debord se configura, de facto, como um lugar incontornável da hermenêutica da contemporaneidade?
Embora esteja ainda aberta a discussão acerca do estatuto histórico do legado de Guy Debord, afigura‑se indiscutível a atualidade do seu pensamento. Na realidade, num mundo que hodiernamente se qualifica como hiperespetacular, Debord ganha a superior dimensão de porta‑voz do que se diria ser, invocando‑se Hegel, o Zeitgeist. Se bem que a voz que fala não seja neutra, mas inconformista, os seus conceitos críticos (designadamente, dois: a «sobrevivência aumentada» e, acima de tudo, o espetáculo) são imprescindíveis instrumentos de análise do perfil epocal do capitalismo vigente. Enquanto «organização social da aparência», o espetáculo corresponde ao momento em que a mercadoria passa a ocupar totalmente a vida toda, vivendo nós, por isso mesmo, numa «sociedade de mercado», cuja riqueza se mede doravante pelo aumento do P.I.B. Trata‑se de um conceito que se configura, à revelia do determinismo subjacente à distinção marxista entre base económica e superstrutura ideológica, como um autêntico conglomerado nocional, no qual se procede à subsunção dos fenómenos que foram sujeitos à análise de Feuerbach, Marx e Lukács, a saber: a alienação, o feiticismo da mercadoria e a reificação. A rede conceptual que assim se constrói permite compreender as singularidades hollywoodescas do presente e, de uma forma concomitante, a hegemonia da «ideia burguesa de felicidade». Com plena consciência do impacto psicopolítico da cultura, Debord mostrou a importância do novo teatro da luta de classes, i.e., os «tempos livres» (com as devidas e indispensáveis aspas…), sob a perspetiva de uma superação revolucionária do capitalismo. Na verdade, se o sonho dos proletários não é senão tornarem‑se burgueses, a Revolução já está perdida. Neste sentido, a redefinição situacionista do agente histórico, ainda que peque por alguma vagueza e ambiguidade, não se reduz a uma «manobra de Humpty Dumpty», porque se conjuga diretamente com a ocupação total da vida social por parte da mercadoria.
Para finalizar a minha defesa, nada melhor do que abrir a porta para um tratamento futuro de linhas de pensamento que mostrem que Guy Debord é, sem dúvida, um pensador do século XXI. É sob o domínio do espetáculo, enquanto «organização social da aparência», que se compreende, antes de mais, a contínua denegação da crise ecológica global que põe em risco a própria sobrevivência da humanidade. Não é só a denegação (de vasto alcance económico‑político) que se compreende, de facto, mas também a ineficácia do exercício mediático de alerta que diz respeito à devastação da Terra. Por que razão é mesmo assim? A resposta encontra‑se na tese número 9 d’A sociedade do espetáculo. Citemo‑la: «Num mundo realmente invertido, a verdade é um momento do falso.» [Fim da citação.] Quer isto dizer que já não é terapêutica nem revolucionária a crítica que tenha como alvo a desmistificação das aparências. No entanto, como é marxiana a base do pensamento de Guy Debord, e não platónica (com efeito, o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social), toda a crítica que hoje se queira como tal, segundo Debord, já não pode ter como ideal regulador o platonismo inerente à iluminação das consciências, mas a luta. É neste preciso contexto que Debord afirma que a superação do espetáculo tem de ir além da mera superação das ideias sobre o espetáculo. Se assim não for, será apenas espetacular essa superação, com o seu consequente consumo, i.e., a mera contemplação da radicalidade ideológica.

Muito obrigado!







[1] Cf. Teeteto, 174ª.







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