UM VERSO DE RILKE
«Por nunca
te abraçar é que que tenho agora.»
Por nunca te
ter ter‑te‑ei sempre. Assim se faz a presença e perfaz na ausência — esse
viveiro da imagem que cresce em altura, pura lembrança. E é aqui, ultrapassada
a linguagem das coisas, que em verdade começa o perigo: alimentar o mito que
não há e há‑de haver.
Se ver‑te é já ver‑me em verso — dizer de
ouro de outrora e dos deuses advindo em memória do jovem que eu era então —, é
porque de ver se não trata deveras, mas de escrever — esse exercício inimaginavelmente
cruel, cuja natureza desperta a ira de quem mansamente subsiste no espaço.
A escrita —
quem o ignora? — começa por ser uma forma respeitada de matar a morte. Mas isso
é só no princípio. Perdida a brancura do gesto inicial, o que fica é a única,
inútil complacência para com tudo o que de nós se desnuda no papel e nele
permanece à maneira de sudário.
Mas deixa‑me
voltar a ti, fazer de novo o desenho da vitória: a minha derrota. Talvez haja
ainda no interior do círculo a sabedoria de o quebrar, e uma súbita abertura
nasça no lugar do compromisso. E embora o espírito nunca se atrase, confesso:
tornou‑se por de mais insuportável a demora da letra. Não a aceitando de modo
algum, compreendo, sem remédio, a tua recusa. E assim, desastradamente ainda,
flutua o verbo à tona do desejo sem corpo que o salve.
Eurico de
Carvalho
In AA. VV., Grande
Antologia de Poesia e Prosa Contemporânea. Lisboa:
Editorial Minerva, 1993, p. 38.
Etiquetas: PROSA
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