domingo, 22 de dezembro de 2019

UM VERSO DE RILKE




«Por nunca te abraçar é que que tenho agora.»

Por nunca te ter ter‑te‑ei sempre. Assim se faz a presença e perfaz na ausência — esse viveiro da imagem que cresce em altura, pura lembrança. E é aqui, ultrapassada a linguagem das coisas, que em verdade começa o perigo: alimentar o mito que não há e há‑de haver.
Se ver‑te é já ver‑me em verso — dizer de ouro de outrora e dos deuses advindo em memória do jovem que eu era então —, é porque de ver se não trata deveras, mas de escrever — esse exercício inimaginavelmente cruel, cuja natureza desperta a ira de quem mansamente subsiste no espaço.
A escrita — quem o ignora? — começa por ser uma forma respeitada de matar a morte. Mas isso é só no princípio. Perdida a brancura do gesto inicial, o que fica é a única, inútil complacência para com tudo o que de nós se desnuda no papel e nele permanece à maneira de sudário.
Mas deixa‑me voltar a ti, fazer de novo o desenho da vitória: a minha derrota. Talvez haja ainda no interior do círculo a sabedoria de o quebrar, e uma súbita abertura nasça no lugar do compromisso. E embora o espírito nunca se atrase, confesso: tornou‑se por de mais insuportável a demora da letra. Não a aceitando de modo algum, compreendo, sem remédio, a tua recusa. E assim, desastradamente ainda, flutua o verbo à tona do desejo sem corpo que o salve.

Eurico de Carvalho
 In AA. VV., Grande Antologia de Poesia e Prosa Contemporânea. Lisboa: Editorial Minerva, 1993, p. 38.


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