domingo, 21 de janeiro de 2007

CENA DIDÁCTICA [VI]

A AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DOS PROFESSORES


Num momento em que se avizinha o início da revisão do Estatuto da Carreira Docente, torna‑se necessário tecer algumas considerações genéricas em torno do actual processo de avaliação do desempenho dos professores, cujo modelo deve ser por completo reformulado.

Os princípios orientadores do processo em causa, previsto no artigo 36.º da Lei de Bases do Sistema Educativo, encontram‑se definidos no artigo 39.º do Estatuto da Carreira Docente. Como se sabe, neste prevaleceu a noção de carreira. Aliás, a sua própria designação é a melhor prova de tal prevalência. Ora, a carreira — enquanto modelo que enquadra a actividade profissional dominante nas grandes organizações burocráticas típicas das sociedades industrializadas — não confere a autonomia que o corpo docente deseja e a natureza pedagógica da sua função recomenda. Além do que, subjazeu ao raciocínio dos anteriores responsáveis pelo Ministério da Educação a intenção clara de promover a “funcionarização” da docência. Concomitantemente, acentuou‑se a centralização do sistema educativo. Neste contexto, e com naturalidade, o processo de avaliação do professorado adquiriu os contornos de uma mera formalidade burocrática, não contribuindo assim para «a melhoria da qualidade da educação e ensino ministrados» (cf. o n.º 2 do Estatuto da Carreira Docente) nem para a dignificação da classe (cf. o preâmbulo do Decreto Regulamentar n.º 14/92 de 4 de Julho). Com efeito, esta não passa pela normalização burocrática da sua actividade, mas pela institucionalização de um código deontológico. De facto, a constituição da profissão docente enquanto profissão verdadeiramente autónoma, ou seja, capaz de fundar a sua própria lei e com o poder de decidir acerca do modo como convém que se desempenhe a docência, não pode deixar de ser a condição sem a qual não será viável a recuperação do prestígio dos professores e da escola, a qualificação do ensino e o consequente sucesso educativo dos alunos.

Apesar de tudo, o presente Estatuto contém algumas sementes — cujo florescimento deveria ser o fruto da futura revisão do mesmo — de uma perspectiva contrária à redução do professor à banal condição de um “funcionário de carreira”. Em boa verdade, as modalidades gerais de avaliação da docência subordinam-se em certa medida a uma filosofia “profissionalista”: se não forem infringidas com alguma gravidade determinadas regras de conduta, no haverá lugar a uma exclusão do corpo profissional. Daí a necessidade de um código deontológico. Só parcialmente, no entanto, é satisfeita essa necessidade, quando o Estatuto enuncia, de forma objectiva, as situações que podem dar origem a uma menção de «Não Satisfaz», as quais dizem respeito a três aspectos da actividade docente que o legislador achou por bem destacar. São eles os seguintes: a relacionação com os alunos e o apoio a estes, o desempenho de cargos pedagógicos e a formação continua (cf. o artigo 43.º).

O primeiro aspecto é fundamental, porque a escola não é um lugar qualquer. É nela que se desenvolve um processo complexo de construção. De quê? Da identidade. De quem? Do aluno enquanto adolescente.

Ora, “ser aluno” e “ser adolescente”, diga‑se de passagem, são realidades muito próximas, indissociáveis até, já que ninguém ignora que o próprio fenómeno da adolescência, tal como o conhecemos, nasceu durante o século XIX, com a Revolução Industrial, quando se iniciou o movimento de escolarização em massa da juventude.

A identidade do eu não é dada, mas, contrariamente ao postulado pela filosofia clássica do sujeito, construída, pois resulta de um trabalho — de luto, de acordo com a psicanálise, para a qual, aliás, a personalidade se constitui e diferencia através de uma série de identificações. Por conseguinte, genericamente falando, a identidade é um trabalho do tempo, o que quer dizer que se coloca aqui a questão do Outro, ou seja, por outras palavras, o sentido da identidade passa necessariamente pela relação.

Na medida em que não são poucas as vezes em que o aluno projecta na pessoa do docente os conflitos que teve com os seus pais, verifica‑se que a relação que nos interessa — a educativa — se configura frequentemente como uma experiência intersubjectiva conflituosa. Portanto, do ponto de vista psicológico, a importância da escola na construção da identidade medir‑se‑á seguramente pela capacidade de resposta dos professores às necessidades de identificação dos adolescentes. Se assim for, de facto, então, na esteira da psicanálise, a avaliação do desempenho profissional dos docentes terá de ter em conta não só as competências científicas e metodológicas, mas também as pessoais. Efectivamente, não basta saber nem saber fazer. É necessário, acima de tudo, saber ser.

O conceito de identidade faz referência a uma construção nunca acabada do eu, se bem que os espaços privilegiados que a suportam se modifiquem em função da fase etária: o da criança é a família; o do adolescente, a escola. Determinada pela sociedade complexa dos nossos dias, a passagem de um espaço para outro, ainda que angustiante para o indivíduo, representa uma imprescindível abertura de horizontes, sem a qual, com certeza, não seria possível desenvolver a série de identificações necessárias à constituição da sua personalidade e evitar o risco de regresso ao narcisismo.

Ao vazio interior devido à perda dos primeiros objectos investidos afectivamente, os pais, e consequente desidealização dos mesmos, corresponde a descoberta, num movimento exógeno prescrito pela ordem social, de outros objectos de sedução afectiva. Muito simplesmente, o adolescente anda à procura de modelos. Pois bem, o docente, quer queira, quer não — e geralmente não quer: tenhamos presente a “crise de identidade” que se vive hoje, a qual pode ser assimilada, psicanaliticamente falando, a uma “crise do Sobreeu” —, é sempre, para o adolescente, um ponto de referência obrigatório, a imagem possível daquilo que ele está para ser: um adulto.

O professor ocupa na sala de aula o lugar do poder. — Nunca é de mais dizê-lo. — Na medida em que esse poder lhe foi delegado pelo sistema escolar, está consequentemente legitimada a sua acção sobre o aluno. Poderá ele, no entanto, renunciar ao seu poder, ou até deixar de o exercer? Excluir‑se‑ia então do sistema, já que qualquer legitimidade se reduz a uma forma vazia sem o concurso da efectividade. Mas mesmo no caso em que o educador recusa impor‑se como adulto, como acontece com as chamadas pedagogias não directivas, ele actua através da sua pessoa e permanece, sem dúvida, um ponto de referência para o aluno.

No tocante a este assunto, há que criticar a não directividade. É esta uma desastrosa ideologia pedagógica, porque tem como consequência a desmontagem da imagem do docente ao nível do simbólico. Ora bem, no meu entender — lacanianamente expresso —, a verdadeira relação educativa deve permitir a passagem da função imaginária — que é aquela que, segundo Freud, preside ao investimento narcisista no objecto — para a função simbólica, que subtende a conquista da identidade, embora esteja profundamente corrompida pelo capitalismo. Logo, toda a acção educativa, se pretende ser digna desse nome, não pode ser senão uma via de acesso ao simbólico. Sendo essa via, liberta o educando dos outros e de si próprio, de modo a que ele compreenda a ordem da Lei e nela se compreenda, pois ela é a própria Lei da Ordem, isto é, da Cultura e da Linguagem.

Na verdade, o que está no fundo da problemática psicanalítica do ensino é a posição respectiva dos parceiros no quadro da relação com o saber, vértice inalienável do mais que conhecido “triângulo pedagógico”, cujo sentido talvez seja o de ser, por assim dizer, a encarnação pedológica do simbólico. De facto, é o conhecimento que, no contexto escolar, faz a mediação necessária entre o docente e os discentes — e entre estes e o mundo. Mas o investimento no saber — objecto socialmente valorizado — é estimulado, como sabemos por experiência própria, pela identificação com o professor. É preciso, pois, utilizar a dinâmica da identificação na relação educativa, porque a presença do educador é reguladora do esforço do aluno. E diga‑se, em abono da verdade, que, contrariamente ao que alguns pensam, o movimento de identificação (“eu sou como o professor”) não aliena o indivíduo. Mais tarde, colocando‑se como rival do professor, poderá atingir a autonomia. Aliás, esse movimento representa uma superação da relação objectal (“eu tenho o professor”) característica da entrada na escola. (Abra‑se aqui um parêntesis para referir o seguinte: o próprio Freud marcou claramente a diferença — recalcada pela ideologia consumista do século — entre a identificação — “o que gostaríamos de ser” — e a escolha de objecto — “o que gostaríamos de ter”.) Em todo o caso, não podemos esquecer que toda a relação educativa é transitória, ou melhor, transitiva, ou seja, tem como objectivo levar o ser em formação a desligar‑se do educador para realizar a sua emancipação. Daí a necessidade de termos em conta os limites de toda a dinâmica educativa que se fundamente na identificação, tanto mais que uma identidade não se resume, de maneira nenhuma, à soma das identificações constitutivas do património biográfico de qualquer um, embora formem um sistema coerente.

Mas em que medida uma classe em crise de identidade pode incrementar a construção plena da personalidade do aluno? Eis uma questão cuja resposta deveria preocupar o Ministério da Educação.

Eurico de Carvalho

In «Jornal de Notícias»,

26 de Março de 1996,

pág. 6.

P.S. — Pese embora o facto de ter sido publicado há mais de uma década, o artigo não perdeu actualidade. Muito pelo contrário, atendendo à recente aprovação do novo Estatuto da Carreira Docente, estão na ordem do dia diversas questões que nele surgem já, antecipando‑se a muitas análises posteriores, com a qualidade da evidência.

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2 Leituras da Montr@:

Blogger MFF disse...

Decididamente, não gosto do teu "P.S.", meu caro amigo e companheiro de armas! Preferia, de longe, uma espécie de "N.B.", cujo POST SCRIPTUM resultaria na mesma intenção comunicativa. É que, meu caro E., este PS deve ser literalmente votado... ao ostracismo. Ao esquecimento. À letização (leia-se: ao rio Letes!)
Bolas! Tarrafal com Tarrafal se paga - mesmo (ou sobretudo?!...)no âmbito das magnânimas letras!
Se ELES até nos negam a actualização científica - à qual deveríamos ter direito SINE QUA NON!...

N.B.: Não devemos vestir a pele do lobo. A bem da desambiguidade do enunciado - e do pensamento! A bem da assertividade do propósito!...
Abraço!

N.B.: Viva a democracia participada! Abaixo a PS-olização!

11:37 da tarde  
Blogger Eurico de Carvalho disse...

Meu caro Manuel, partilho a tua revolta em relação ao partido em questão, mas (nota bem!) não deves culpar as palavras pelos erros dos outros! Se não queremos dar tiros de pólvora seca, há que seleccionar os alvos da nossa crítica.
Um abraço!

12:53 da tarde  

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