OS GUARDADORES DE PAPEL HIGIÉNICO
O vírus trouxe‑lhe a verdade que ignorava: o desnudamento da vida. Serviu‑lhe a carne crua que ilustra a figura arcaica do bicho da terra, enrolando bolinhas de sebo num buraco. Do assalto aos supermercados, fixara apenas a imagem dos milhares de carrinhos cheios de papel higiénico. Era como se o corpo de plástico do mundo tivesse em pleno olho do cu o centro do Universo. Tornou‑se‑lhe insuportável o cortejo insurrecto dos números e o brilho maligno do televisor.
Refugiou‑se no quintal da casa velha da avó, alargando os dias e as noites. Entre flores sem nome e com perfume raro, descobria algumas rosas faiscantes e certas orquídeas de cor inesperada. Às seis galinhas (seis, precisamente, e nenhum galo) dava, de madrugada, a couve mais mordida pelo Sol. À tarde, mal se adivinhava a sombra de quem lhes punha o milho, agitavam‑se as penas e as cristas da capoeira, no seu esplendor rural e meio barroco.
Quando havia gordo luar, ruminava amores de Pasárgadas e dislates da juventude. Entretinha‑se, então, com longas e murchas derivações de lógica elementar. Para quê? Para queimar o tempo em nome da eternidade. Bastava‑lhe, afinal, a pura ideia, que florescia maliciosamente entre as fileiras sorumbáticas de martelos semânticos e sintácticos. Passava tudo a limpo, de novo, mas já lhe fugia o pensamento para a falta (anunciada pela voz gongórica da avó) de rolos de papel higiénico.
Eurico de Carvalho
In AA. VV., Quarentena — Memórias de Um País Confinado. Lisboa: Chiado Editora, 2020 [No Prelo].
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