O DESEJO, O PEDIDO E A NECESSIDADE [I]
«Comentar um texto é como fazer uma análise.»
Fazendo a reconstrução lógica da argumentação lacaniana presente num dos célebres Escritos (mais precisamente: «Subversão do Sujeito e Dialéctica do Desejo no Inconsciente Freudiano»), dele, sem dificuldade, podemos extrair, com vista à sua integração no conjunto da obra do «Gôngora da Psicanálise», quatro teses fundamentais:
1) o desejo não é o pedido nem se reduz à necessidade;
2) o desejo é o desejo do Outro;
3) o Outro é o lugar do significante;
4) não há Outro do Outro.
Se assim as consideramos, não é sem porquê: elas balizam o trabalho de Lacan, cujo «retorno a Freud», de acordo com a inteligente (ainda que um pouco «culturalista») leitura de Althusser, não significa de modo algum uma retoma infantil, caninamente fiel, da palavra do mestre, mas sim a sua tradução em função de uma nova chave epistemológica, de matriz linguística, capaz de a libertar das triplas malhas reducionistas do biologismo, do psicologismo e do sociologismo, impasses teóricos resultantes do facto, aliás destacado pelo mesmo leitor, de o «génio de Viena» ter sido obrigado, como qualquer outro fundador de uma nova disciplina científica, a pensar a sua descoberta no contexto histórico‑cultural que era o seu, marcadamente positivista, como sabemos, do qual herdou, por exemplo, o modelo «mecanicista» do funcionamento do «aparelho psíquico», obviamente incompatível com a revisão dialéctica do campo psicanalítico levada a cabo pelo seu heterodoxo discípulo gaulês com a ajuda de Hegel.
Superando de vez as glosas pseudobiológicas e os equívocos provocados pelo seu vocabulário biofísico e económico, manifestamente anacrónico, Lacan, com base no instrumental que lhe é fornecido pela linguística contemporânea — cuja concepção formal da linguagem é para si decisiva —, dessubstancializa a noção de inconsciente: não se trata já da «sede (primordial) dos instintos», pois só lhe convém cientificamente o título de «cadeia (transindividual) de significantes». Daí que o desejo, objecto central da reflexão para que apela o artigo que aqui queremos comentar, não deva ser compreendido nos moldes ingénuos de uma energética, mas exija uma tradução retórica: há que substituir então a imagem tradicional de uma força cega, de um desregramento instintivo ou movimento sem lei, pela ideia de um curso metonímico — efeito simbólico, claro está, advinda da falta de ser introduzida pela palavra, que mata a coisa, sendo por isso o desejo índice de uma ausência, eterno desejo de outra coisa.
I
Para Althusser, o objecto da psicanálise consiste tão‑somente nisto: «os ‘efeitos’, prolongados no adulto que sobrevive, dessa extraordinária aventura que, desde o nascimento até à liquidação do complexo de Édipo, transforma um pequeno animal, concebido por um homem e uma mulher, numa criança humana». Dessa humanização nos fala o texto de Lacan, quando, pondo claramente em xeque toda a tentativa de aglutinação biopsicossociológica do discurso psicanalítico, se atém à distinção, doravante clássica, entre necessidade, desejo e pedido.
Imediatamente após o nascimento, dada a sua impotência física, a criança revela‑se incapaz de satisfazer as suas necessidades fisiológicas sem o concurso de uma ajuda exterior (materna, em princípio), para a qual apela primariamente por via do grito, manifestando‑se deste modo inicial o pedido, cujo significado último (vê‑lo‑emos adiante) não pode ser reduzido à mera solicitação de uma satisfação. Partindo de tal incapacidade, Lacan conclui que a nível antropológico não há necessidade (essencialmente biológica, é certo) que seja no entanto pura, porquanto a dependência infantil se sustenta por intermédio do universo da linguagem. Consequentemente, o corpo vivido é simbólico: está na encruzilhada onde se encontram a linguagem e o inconsciente.
Por força da primeira forma da fala, o pedido — que não sendo apenas de ajuda, mas também, e acima de tudo, de amor, constitui uma procura de reconhecimento de si mesmo por outrem —, mediatiza‑se a necessidade, difere‑se a sua satisfação, o que, de certa maneira, permite a sua passagem para o registo do desejo. Isto não quer dizer, contudo, que seja legítima a redução do desejo, que não pode ser satisfeito por nenhum objecto independente do indivíduo, à necessidade, a qual, provocada por uma tensão interna do organismo, naturalmente se resolve através de um contacto com o exterior. Reduzir o primeiro à segunda é promover a confusão entre dois níveis totalmente diferentes: o biológico e o simbólico. Não existe, de facto, como afirma Althusser, nenhuma «continuidade de essência» entre a necessidade orgânica e o desejo inconsciente. Verifica‑se até a impossibilidade de se falar, a propósito do homem, de uma necessidade organicamente pura, visto que ela está, desde logo, encarrilada nos «desfiladeiros do significante». Por nunca ser simplesmente animal, eis que ela surge envolta já pelo «muro da linguagem», mesclando‑se assim com o pedido e o desejo.
Em tal processo de humanização — passagem da natureza à cultura — descortina Lacan duas grandes etapas: a fase do espelho e o complexo de Édipo. Tanto uma como outra — note‑se bem — são determinadas pela mesma Lei: a da ordem simbólica (formalmente idêntica à da linguagem). Anterior à existência concreta de todo o candidato à humanidade, ela não se imprime em quem ainda não fala, i.e., no infante, como o ferro que marca brutalmente o gado, mas é transmitida em função de um modelo socialmente estabelecido: o Pai, representante original da autoridade da Lei.
Constituindo uma estrutura preexistente ao indivíduo e na qual se inscreve, a ordem simbólica, que não se confunde com a realidade social propriamente dita, implica a impossibilidade de um acesso imediato do sujeito a si mesmo: a sua identidade constrói‑se a partir da relação com o Outro.
Durante a fase do espelho, situada por Lacan entre os seis e os dezoito meses, ou seja, numa época em que «a ananké somática da incapacidade do homem para se mover» justifica a sua absoluta dependência, o Outro em jogo, simples reflexo do seu próprio corpo, é a Mãe ou quem desempenha o seu papel. Identificando‑se com a imagem do semelhante enquanto forma total, espelhando‑se nele, o pequeno homem antecipa imaginariamente a apreensão e o domínio da sua unidade corporal. O Outro é o seu espelho, verdadeira matriz do Eu. Efectivamente, este constitui‑se à imagem daquele, que se vê por sua vez reduzido à figura de um alter ego.
Mas na medida em que nesta fase narcisista a criança se identifica com o objecto que falta à Mãe — o falo —, a relação intersubjectiva é uma relação imaginária: dual, condenada ao malogro, sem saída — que não seja a entrada em cena de um terceiro elemento: o portador da Lei (da «proibição do incesto»). Sendo ele, socialmente falando, o Pai, em seu nome se priva o desejo infantil do seu objecto natural. De facto, o sentido da Lei, cuja justificação não radica em nenhuma necessidade biológica, aponta para a exclusão da criança do campo do serviço sexual da Mãe. Quebra‑se então o encanto da relação especular. Passa‑se assim do registo do imaginário para o do simbólico: do «plano do espelho», da pluralidade do vivido do Eu narcísico, para o «muro da linguagem», no qual, mediante o nome próprio, se inscreve legalmente o sujeito enquanto efeito do discurso do Outro, irredutível à figura do alter ego.
É essa distinção entre imaginário e simbólico, segundo Deleuze, a condição de possibilidade do Édipo estrutural de Lacan: «sistema de lugares e de funções» — que não devemos confundir com a figura historicamente variável dos seus ocupantes. Por outras palavras: o Édipo não é o mito, o qual, aliás, «não poderia manter‑se indefinidamente em cartaz nas formas de sociedade [como a nossa, acrescentamos nós] onde se perde cada vez mais o sentido da tragédia». É, sim, uma estrutura. Por ser «a ‘máquina teatral’ imposta pela Lei da Cultura a todos os candidatos, involuntários e forçados, à humanidade» (Althusser) compete‑lhe «distribuir, num determinado domínio, o desejo, o seu objecto e a sua lei» (Deleuze). Naturalmente, «tudo isto exige o concurso de elementos estruturais» — os significantes em cadeia — cuja intervenção nada deve às contingências da história do sujeito. Muito pelo contrário, «é na relação com a lei à qual ele se liga que se situa tudo o que lhe pode acontecer de pessoal», ou seja, são da sua história esses acidentes, não sendo por isso a expressão pura e simples da multiplicidade da vida, na medida em que se deixam integrar num determinado universo simbólico.
Estamos agora em condições de compreender a questão fundamental colocada por Freud: Que é um Pai? É o Pai morto, ou melhor, lacanianamente expresso, o Nome‑do‑Pai: «suporte da função simbólica que, desde a orla dos tempos históricos, identifica a sua pessoa com a figura da lei», promulgando‑a. Trata‑se portanto de uma instância que não pode ser confundida com os avatares do pai real ou imaginário. Reduz‑se deste modo o alcance da crítica culturalista, «segundo a qual, em determinadas civilizações em que o pai é desprovido de toda a função repressiva, não existiria complexo de Édipo, mas um complexo nuclear característico de tal estrutura social: na realidade, nessas civilizações, os psicanalistas procuram descobrir em que personagens reais, e mesmo em que instituição, se encarna a instância interditória, em que modalidades sociais se especifica a estrutura triangular constituída pela criança, o seu objecto natural e o portador da lei» (Laplanche & Pontalis). É preciso, pois, ler o Édipo à luz da «proibição do incesto», à qual, por exemplo, Lévi‑Strauss (cuja presença na obra de Lacan é manifesta) atribui um estatuto arquetípico: origem da diferença entre natureza e cultura.
EURICO CARVALHO
In «O Tecto»,
Ano XVI, n.º 46,
Setembro/2004, pág. 4.
Etiquetas: CENA DIDÁCTICA, ENSAIO
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