sexta-feira, 26 de maio de 2006

PÁGINAS SOLTAS DO DIÁRIO DE UM LEITOR [IV]

IV

DIONISO ADOLESCENTE

Porto: 1979‑1985. — À Rua de S. Paulo

Descoberto o hino solitário da carne sem remorso, cobri‑me de lexemas impolutos. Donde o nascimento do poema. Escrevi o primeiro à luz da musa geral: amor que rima com dor. Essa equação de Setembro, mês dos cantores, tornou‑se o exergo de uma moeda cujo preço só mais tarde conheci: demasiado alto. Entretanto adolescia no interior das palavras enlouquecendo em nome de algumas — porventura abstractas, por ventura concretas.

Os livros multiplicavam‑se por mil viagens, e o seu peso fazia‑se sentir no coração das mulheres. Era como se tivesse um sótão em vez de alma. Se subíssemos as escadas corroídas pela lembrança, poderíamos cheirar, por exemplo inicial, as orquídeas, já murchas, de Nero Wolfe, bebedor de cerveja e detective em Nova Iorque, ou talvez fosse possível ler de novo o estranho caso de Mr. Smith, avatar de Cristo vindo de Marte.

Sei‑o bem: Os lábios de Manuela, cuja sede quis, nunca leram tais páginas, tão‑pouco as minhas. Guardei‑as, cardíacas, por ser original a alegria de as ter escrito, porém diário o amargor de as ter guardado.

Com o ousio inconsequente de um gaiato, enviei o amor pelo correio. Era agora o destinatário o corpo abundantemente fêmeo de Paula. Tudo nela se fizera volume musical: o colo, a boca e as ancas. Quem justificaria a existência de uma beleza tão clássica como a sua? Não a lira analfabeta. Com ar materno, devolveu‑ma. E no rio amarulento das lágrimas vislumbrei com horror, boiando, o pé boto de Philip. Deixei‑as, súbito, pela imagem da dança de Gavroche. Por entre balas, quisera da morte a legenda apenas.

(Ontem disseram‑me que Maria se drogava. Não sei se é verdade, embora me recorde de haver nos seus cabelos despenteados pelo medo o perfume das flores de S. Francisco. Qualquer coisa como mágoa coagulara dentro de si. Morava perto da Boa Hora. Cozinhei nessa altura uma espécie de fábula — a de a salvar pelos meus versos fumegantes. Mas esses não traziam o fermento redentor de uma criança chamada Aliocha.)

Com a Júlia, iluminura grácil e vulgar, conheci essa inocência de noite feita que anula cruelmente a juvenília. Dito o adeus à linguagem de água e sol, fiquei nu, inútil para o mistério. Divertia‑se com o meu vocabulário de estrelas cadentes. A cabeça de fósforo de Meursault jamais seria acesa na sua, estrangeira à metamorfose de Gregor. Todavia, com preguiça, sem ambulância hospitalar, explicava‑lhe a importância da recusa.

Entre a língua de Calisto Elói e a camisa de dormir de Mary, símbolos nacionais, não sabia escolher. Coleccionador de nomes e fantasmas, viajante com muito tempo e pouco espaço, pedira‑me certamente por empréstimo à literatura. Sem dinheiro para os juros, não sei, no entanto, como pagar a conta que o futuro diz ser minha.


Eurico de Carvalho (Editor)

In «O Tecto», Ano XVII,

n.º 49, Maio/2005, pág. 9

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