ENTRE O AMOR E O DESEJO: DO ELOGIO DO CASAMENTO À IDOLATRIA DO ESTADO
O amor significa a consciência que o sujeito tem da sua união com outrem. Mas apenas a conquista enquanto renuncia a ser para si mesmo. É nesta renúncia que reside a vida do amor. Sendo atributo da subjectividade que permanece una consigo no sentimento, ou seja, de uma forma imediata, não ultrapassa o plano da individualidade sensível. Se analisarmos o fenómeno, nele até discerniremos dois momentos: 1.º) o sujeito que ama já não quer ser uma pessoa independente (se o fosse ainda, sentir‑se‑ia incompleto); 2.º) o sujeito encontra‑se noutra pessoa, mas só a encontra, de facto, enquanto ela, por sua vez, se encontra nele. Quer isto dizer que o amor repousa sobre dois seres autónomos que têm no entanto o sentimento da sua unidade. Existe, de um lado, o sentimento dialéctico de que houve um abandono da personalidade (abandono esse, aliás, que constitui o elemento comovente do amor, a sua negatividade); do outro, porém, mantém-se a autonomia enquanto dimensão positiva da existência. Na medida em que nada há de mais resistente que a própria consciência de si, que é objecto de negação, e cuja positividade, contudo, o sujeito enquanto tal, i. e., na sua qualidade de sujeito, não pode ab‑rogar, trata-se realmente de uma contradição insusceptível de ser resolvida pelo entendimento. Mas resolve‑a o amor através do casamento. Este estado civil, além de ser um «destino objectivo», é também um «dever moral», porque somente na família («substancialidade imediata do espírito») a relação sexual alcança «a sua significação e determinação espiritual e ética». Assim se justifica, segundo o filósofo alemão, a condenação do individualismo estético subjacente à argumentação romântica (tal como se encontra, por exemplo, na Lucinda de Schlegel) que pretende ver no matrimónio uma formalidade supérflua e exterior ao amor. «Tal opinião, que se apresenta com a pretensão de constituir a mais alta ideia da liberdade, da interioridade e da realização do amor, só afinal nega o que há de moral no amor»: a subordinação do instinto à consciência. Trata‑se de um romance abominado por Hegel, já que nele, putativo evangelho do «sentimento da carne», Schlegel procedeu à inversão da tabela clássica dos valores burgueses. Sob a égide de duas figuras mitológica (expressamente convocadas pelo romancista), podemos facilmente avaliar o alcance de tal corte axiológico a partir deste quadro:
BIPOLARIDADE | |
PÓLO POSITIVO | PÓLO NEGATIVO |
Narciso | Prometeu |
Imaginação | Razão |
Ócio | Trabalho |
Prazer | Dever |
Carne | Espírito |
Mulher | Homem |
Retoma Lacan em certa medida a crítica aos românticos, quando desmascara as ilusões libertárias do «sexo‑esquerdismo» de Reich e Marcuse, concluindo que «não existe amor funcionalmente razoável na comunidade humana a não ser por intermédio dum certo pacto» inicial: o casamento (independentemente da forma concreta que ele possa assumir no interior de cada cultura). Mas Hegel vai ainda mais longe na defesa desse pacto simbólico, pondo‑o a salvo das consequências da radicalização romântica do princípio da subjectividade do mundo moderno, quando pondera a natureza contingente do seu ponto de partida. Admitindo primeiramente que esse ponto apresenta dois extremos (por um lado, a conveniência dos pais; por outro, a inclinação dos amantes), imediatamente acrescenta que o primeiro é preferível ao segundo por ser «mais conforme com a moral objectiva». E só por esta via (acima do acaso e das inclinações particulares e contingentes) recebem os momentos do amor a sua relação verdadeiramente racional: a sua unidade ética. Assim sendo, deve ser condenado todo o amor que não assuma esta forma, ou melhor, que não se realize moralmente, porque não contribui, muito pelo contrário, para a espiritualização do homem. E com isto tem‑se em vista o próprio movimento do pensamento: o salto que o eleva acima do sensível, a marcha que o conduz do finito para o infinito. Devemos tomá‑la como movimento dialéctico que faz com que a consciência sensível supere a sua pobreza substancial e ascenda à condição plena da espiritualidade concreta.
Ora, contrariamente ao desejo, consciência de si, o amor (sentimento que já não tem lugar no Estado, morada terrestre do Espírito) não revela, na verdade, nenhum desempenho de especial relevo. Devido à insuficiência da sua negatividade (inerente à contradição que o constitui — e por ele naturalmente resolvida por intermédio do casamento, facto moral imediato), falta‑lhe a força bastante para ser a mola propulsora do processo que alimenta a multiplicação dialéctica das figuras do saber resultantes das várias experiências interiorizadas pela consciência ao longo do seu itinerário espiritual. Pelo desejo, diferentemente do amor, a consciência de si relaciona‑se primeiro com um objecto desprovido de subjectividade. Mas só através da destruição deste último, num movimento contrário à fusão amorosa, chega ela a identificar‑se consigo mesma, ou antes, «apenas tem certeza de si própria mediante a ab‑rogação desse outro que se expõe, que se lhe apresenta como vida autónoma». A actividade autoconsciente consiste aqui num movimento que ab‑roga a alteridade objectal, pelo qual se consuma a satisfação do desejo. «Mas nesta satisfação [a autoconsciência] passa pela experiência da autonomia do seu objecto [subsistindo perante ela de um modo indiferente]. O desejo e a certeza de si mesma alcançada com a sua satisfação são por ele condicionados, visto que vêm a ser através da ab‑rogação desse outro; para que essa ab‑rogação exista, é preciso que esse outro seja [i.e.: subsista]». (Salienta‑se assim a dimensão objectal do desejo, na qual, mais tarde, vai insistir o pensamento freudiano.) «É por isso que, em virtude da autonomia do objecto, [a autoconsciência] só pode atingir [em última instância] a sua satisfação, desde que o próprio objecto realize em si mesmo a negação». É claro que se trata de uma realização que pressupõe a passagem para outro nível do desenvolvimento dialéctico: o sujeito confronta‑se com um objecto já não privado da subjectividade. Por outras palavras: pelo facto de ser consciência o objecto que se nega a si mesmo e, nessa negação, manifesta autonomia, «a consciência de si só atinge a sua satisfação noutra consciência de si». O que ela deseja afinal é o desejo do outro, ou seja, o seu reconhecimento. No seu famoso comentário à Fenomenologia do Espírito, Hyppolite resume muito bem este desenvolvimento dialéctico: «A consciência de si é desejo; mas o que ela deseja, sem o saber ainda explicitamente, é ela própria, é o seu próprio desejo, e é por isso mesmo que só poderá alcançar‑se a si própria ao encontrar um outro desejo, uma outra consciência de si. A dialéctica teleológica da Fenomenologia explicita progressivamente todos os horizontes desse desejo, que é a essência da consciência de si. O desejo tem em vista os objectos do mundo; depois, um objecto já mais próximo de si mesmo, a vida; por fim, uma outra consciência de si: é o desejo que se procura a si mesmo no outro, o desejo do reconhecimento do homem pelo homem.» Verifica‑se que a dialéctica do desejo culmina na luta viril pelo reconhecimento[i]. Na sua sequência, através do trabalho, desejo refreado, aprofunda‑se o processo de humanização do homem. Tudo isto traduz, claro está, uma complexificação da existência, que se multiplica por vários patamares: económico, social, político e cultural. Ora, para Hegel, é não só na luta e no trabalho (ou seja: no plano económico‑social da realidade), mas também no contexto político‑cultural que o homem tem a sua vida substancial efectiva. Significativamente, o seu conservadorismo moral leva‑o a limitar à esfera familiar o círculo de actividades da mulher, excluindo‑a deste modo do domínio estatal e científico. Ela é incapaz de responder às exigências da universalidade concreta, pelo facto de estar presa, ao contrário do homem, à subjectividade das inclinações e às contingências da opinião[ii]. (Para os contemporâneos da emancipação feminina, chega a ser chocante a sua parcialidade: a seu ver, estará em perigo o Estado, quando as «donas de casa» assumirem a chefia do governo[iii]). É verdade que essa limitação constitui um facto histórico: «A gestão doméstica, com a sua importância incomensurável para o conjunto da vida, é o grande contributo cultural da mulher, e a casa traz inteiramente a sua marca» (Simmel). É outra coisa, porém, tomar o facto como direito. Fazê‑lo significa cometer uma falácia naturalista: pretende‑se assim validar uma posição axiológica a partir de dadas formas de vida. E estas, como sabemos, não são eternas.
EURICO CARVALHO
In «O Tecto»,
Ano XVII, n.º 50,
Julho/2005, pp. 2/7.
[i] A virilidade da luta mede‑se pela sua periculosidade, pois ela «trava‑se para a vida e para a morte». Por outro lado, com o medo do servo, que prefere a vida à liberdade, começa a sociedade humana, ou melhor, a sua organização política: «A luta do reconhecimento e a submissão a um senhor é o fenómeno em que surgiu a convivência dos homens como um começo dos Estados.»
[ii] Hegel chega a comparar o carácter da mulher à planta, correspondendo o animal ao que é próprio do homem. E a razão de ser da comparação radica na capacidade que, por oposição à planta, o animal possui: a mobilidade própria. Assim sendo, está mais próximo do Espírito, que «nunca está em repouso, mas é concebido num movimento sempre progressivo». É por isso que a vida animal constitui o verdadeiro símile do conceito. Com efeito, este último, na sua concretização especulativa, não é senão automovimento.
[iii] Com certeza que Freud não deixaria de pensar o mesmo, atendendo à sua insistência na fragilidade do Sobreeu feminino. Explicando‑a pela insuficiente independência desta instância em relação às suas raízes emocionais, atribui à mulher, por exemplo, um conceito de justiça que não se compadece com as exigências da universalidade. Nesta e noutras atribuições, claro está, segue o pensamento tradicional sobre a matéria: «O carácter feminino raramente se elevará à mais alta ideia de pureza ética, indo raramente além de actos afectivos» (Schiller). Bataille exprime a mesma ideia, mas de um modo brutal: «Assim, se é falso [como Freud dá a entender] que cada mulher seja uma prostituta em potência, verdade é que a prostituição é uma consequência da atitude feminina. Na medida da sua capacidade de atracção, cada mulher está na mira do desejo dos homens. A menos que se esquive inteiramente, por preconceito de castidade, o único problema é o de saber qual o preço e quais as condições necessárias para que ela ceda. Satisfeitas estas condições, sempre a mulher se entregará como um objecto.»
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