CINCO PARÁGRAFOS DE UM LIVRO POR VIR [V]
§5
Eu e o automóvel. — Excêntrico por dentro e não por fora, sempre me considerei uma alma difícil, avessa a fazer de corpo no circo do mundo. Daí que me sinta por vezes anacrónico numa civilização como a nossa, que se define quase exclusivamente pelo espaço, confundindo assim ser com existir. E é agora (aqui mesmo, onde se cumpre a experiência de tal equação) que há que falar do automóvel. É este, com efeito, segundo o Barthes das Mitologias, o objecto mágico por excelência da civilização ocidental. E é mágico porque — ninguém o ignora — invade o imaginário de muitos de nós. O hodierno culto da velocidade, por exemplo, é bem o sinal dessa colonização sistemática do imaginário que hoje se processa à escala planetária. Aliás, à publicidade compete, como é sabido, a regulação mediática deste novo colonialismo.
A redução espectacular do ser à existência, novo imperativo categórico, obriga à assunção da transparência feita em nome do hedonismo sanitário vigente. Tal mandamento oculocêntrico — em suma: metafísico — não é pensável sem o privilégio contemporâneo que a imagem goza em desfavor da palavra, cujo apelo à escuta atenta não se consegue ouvir por ser de todo inaudito e difícil, se não impossível, de cumprir num universo onde o silêncio é mal visto. Rendemo‑nos cedo de mais à cultura do espectáculo! Há quem lhe preste uma vassalagem que direi pornográfica!, a qual alimenta uma postura insidiosamente oral de estar na boca de cena mundial e cujo melhor símbolo é a pastilha elástica.
Recordo neste momento as minhas lições de condução. Aprender a conduzir não era então, como se depreende do que disse atrás, uma questão meramente técnica. Era também um ajuste de contas com o meu imaginário. De facto, a minha recusa do automóvel (legítima, do ponto de vista da teoria, por ser afinal a recusa de uma civilização, a do espaço) não era senão, do ponto de vista prático, uma denegação, uma vez que disfarçava uma incompetência psicomotora. Tornava‑se consequentemente abstracta essa recusa, apesar da aura anacrónica que pretendia emprestar ao meu ser através da mesma. Superar semelhante abstracção — e não saltar‑lhe por cima! — implicava, em tal contexto imagético, admitir a vertigem que me assaltava por haver transcendência neste mundo.
Assim, no meu caso, tirar a carta de condução assumiu contornos que diria quase terapêuticos. Foi a minha reconciliação com o espaço! Mas é mister fazer do desejo a morte da coisa — e não a do sujeito. E isso só se consegue a partir do momento em que se supera a magia do real, a sua transcendência, no sentido da sua realização — imanente — como objecto.
Eurico Carvalho
Texto publicado em Março de 2003
no jornal «O Tecto» de Vila do Conde
(Ano XV: N.º 40). Cf. página 5.
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