CINCO PARÁGRAFOS DE UM LIVRO POR VIR [II]
§2
O vagabundo. — Segundo o filósofo do Meio‑dia, todo o conceito nasce do igualamento nocturno do desigual. Encontra‑se assim na génese da ciência algo de semelhante a um preconceito democrático. — Não é o sujeito epistémico colectivo? — Pois bem, consumida a inocência, resume‑se agora a verdade a uma metáfora morta — a um certo livro de prestígios, muito popular.
Mas o vagabundo é quem escreve. E fá‑lo na linha do horizonte, qual fio da navalha. Para tela das suas palavras escolheu o vento que sopra do Norte — e não a areia meridional, arredondada pelo mar. Viaja no tempo, sem pressa. Deste modo utópico se diz a verdade do desejo; a inversa cedo se revelou a teia de aranha dos anões que saltarilham na praia e fé não têm nos gigantes.
Nesta era, mortal para a distância, cresce na penumbra, invisível, incha até!, o distanciamento — e é como se este fosse uma nova doença, tão jovem ainda que lhe falta o nome. Mas quem escreve de pé mantém‑se no seu lugar, fora de si e dentro do mundo, à espera do acontecimento, pronto a capturá‑lo na rede da linguagem. De sentinela na montanha, respira o ar inteiro da alegria, arma da aparência criadora. Aeronauta do espírito, reconhece a necessidade de ser vizinho do génio das coisas que se afastam da sua essência, não sendo outro afinal o futuro.
Eurico Carvalho
Texto publicado em Março de 2003
no jornal «O Tecto» de Vila do Conde
(Ano XV: N.º 40). Cf. página 5.
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