CARTAS DE MEMÓRIO A CÁRMEN [II]
SEGUNDA CARTA
Cármen, nada sei da estrela polar. Caí do burro, e é noite: sonho contigo. Talvez me perca no caminho fantástico pelo qual regresso a tua casa. De nada me serve a rosa‑dos‑ventos da Metafísica. Estarei a mudar de pele? De farol? Onde está esse terrível desvio do corpo pela teoria? Não vale a ternura mais que o discurso? Não é por isso o preço a pagar a moeda forte da tristeza? Não tenho respostas nem as quero. Uma coisa é certa: hei‑de tropeçar infinitas vezes — sob um céu sem azul — nos montes verdejantes do desejo.
P. S. — «Tolle, lege!»
RETRATO VAGAMENTE HEGELIANO DE UMA SENHORA
Ela tem certamente o porte das valquírias da lenda. Mas tem‑no apenas num estado virtual — ou, se quiserem, para dizê‑lo na linguagem antiquíssima da Filosofia, mantém‑se fora de si ainda a nobreza do seu corpo, cuja inocência tarda a fazer‑se espírito. No dia de tal nascimento, será por certo maravilhoso ver‑se o Sol a acompanhar o meneio inesperado das suas ancas em movimento, perdida já a nativa exterioridade do andar de outrora. Então, sim, reconhecida a liberdade da substância, os cabelos (de tão longos…) serão com certeza a mais séria imitação mundial das ondas, as quais, como sabemos, acabam sempre por lamber a praia deserta.
Por agora lamento o atraso da verdade. Embora (sei‑o bem) do belo haja nunca parto fácil, custa‑me admiti‑lo, quando o mesmo (em forma de mulher) passa por mim como se fosse um diamante ausente. E este, todo ele grita — imagino — pelas mãos cuidadosas se um lapidário habilitado.
Nela, por culpa da Lua, o feminino encarnou como pura substância. Ora, se esta última, no dizer do filósofo, é também sujeito, para quando o bater de asas do anjo?
Eurico de Carvalho
Texto publicado em Junho de 2003
no jornal «O Tecto» de Vila do Conde
(Ano XV: N.º 41).
Cf. páginas 9/10.
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