domingo, 19 de março de 2006

CARTAS DE MEMÓRIO A CÁRMEN [II]

SEGUNDA CARTA

O burro e a sua mensagem aguada, Cármen, perderam‑se no deserto que cresce à nossa volta. Sem esquecer nenhum buraco, o cadáver do espírito grita ubiquamente a última do século: «A dor já não salva! Contribui apenas para a tiragem dos jornais!» Hienas fabulosas, múltiplas e analfabetas, pululam por aí. O lodaçal do autocontentamento é o seu ninho popular. Julgam‑se tigres, mas perseguem tão‑só o cheiro insensato da literatura. Caçam em grupo, como convém: democraticamente. Cabe‑lhes o alto papel de abutres. Por ser intenso o fumo do progresso, desenham há uma eternidade um círculo de chamas sob um céu sem lanternas.

Cármen, nada sei da estrela polar. Caí do burro, e é noite: sonho contigo. Talvez me perca no caminho fantástico pelo qual regresso a tua casa. De nada me serve a rosa‑dos‑ventos da Metafísica. Estarei a mudar de pele? De farol? Onde está esse terrível desvio do corpo pela teoria? Não vale a ternura mais que o discurso? Não é por isso o preço a pagar a moeda forte da tristeza? Não tenho respostas nem as quero. Uma coisa é certa: hei‑de tropeçar infinitas vezes — sob um céu sem azul — nos montes verdejantes do desejo.

P. S. — «Tolle, lege!»

RETRATO VAGAMENTE HEGELIANO DE UMA SENHORA

Ela tem certamente o porte das valquírias da lenda. Mas tem‑no apenas num estado virtual — ou, se quiserem, para dizê‑lo na linguagem antiquíssima da Filosofia, mantém‑se fora de si ainda a nobreza do seu corpo, cuja inocência tarda a fazer‑se espírito. No dia de tal nascimento, será por certo maravilhoso ver‑se o Sol a acompanhar o meneio inesperado das suas ancas em movimento, perdida já a nativa exterioridade do andar de outrora. Então, sim, reconhecida a liberdade da substância, os cabelos (de tão longos…) serão com certeza a mais séria imitação mundial das ondas, as quais, como sabemos, acabam sempre por lamber a praia deserta.

Por agora lamento o atraso da verdade. Embora (sei‑o bem) do belo haja nunca parto fácil, custa‑me admiti‑lo, quando o mesmo (em forma de mulher) passa por mim como se fosse um diamante ausente. E este, todo ele grita — imagino — pelas mãos cuidadosas se um lapidário habilitado.

Nela, por culpa da Lua, o feminino encarnou como pura substância. Ora, se esta última, no dizer do filósofo, é também sujeito, para quando o bater de asas do anjo?


Eurico de Carvalho

Texto publicado em Junho de 2003

no jornal «O Tecto» de Vila do Conde

(Ano XV: N.º 41).

Cf. páginas 9/10.


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