CINCO PARÁGRAFOS DE UM LIVRO POR VIR [I]
§1
Descartes e os anjos. — Pensar sem o corpo — eis o programa cartesiano: a recusa da infância. Em nome do princípio da transparência, que determina a verdade do olhar do espírito, o ser dá‑se apenas na condição de objecto, figura por de mais pobre. Havendo unicamente ciência da substância, expulsa‑se desta o humano, que assim adquire o carácter do que é impróprio para ver. A desencarnação do sujeito, típica da Modernidade e da sua ideologia, a cultura da representação, assinala clara e distintamente a ruptura entre o conhecimento e a vida — e o seu fruto: o crescimento dos desertos cuja denúncia se fez libelo pela pena do filósofo do Meio‑dia.
O anjo, para quem pensar é ver e ver — projectar no espaço, é o outro nome do sujeito, o que melhor exprime o seu desprezo pelo corpo, a sua cegueira. E se tal doença dos olhos se compreende por ser o erro primário de uma física, mera cinemática, que desconhece a força e a distância, já o erro não se aceita, pois o corpo não se quer igual à matéria nem se reduz à pura geometria. Ora, por entre coordenadas e abcissas se perde o corpo no território nocturno da quieta exterioridade.
É de lei: o todo não se iguala à soma das partes que o constituem. Consequentemente, o corpo não se reduz ao somatório orgânico. Por isso ultrapassa o nível fisiológico da máquina. Mas como explicá‑lo a quem colecciona fotografias e ignora o brilho do cinematógrafo?
Eurico de Carvalho
Texto publicado em Março de 2003
no jornal «O Tecto» de Vila do Conde
(Ano XV: N.º 40).
Cf. página 5.
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