CINCO PARÁGRAFOS DE UM LIVRO POR VIR [IV]
§4
A substância e o acontecimento. — É esta a imensa ficção do amante: ser amado na ordem da sua substância e nunca na dos seus acidentes, como se estes não fossem, como são, de facto, o único e provisório âmbito do amor, a que muitos gostariam de dar, na consentida ignorância do devir, a permanência metafísica de algum nome por de mais absoluto.
Os anjos, nostálgicos da propriedade do ser e de quando a substância não era um mero fruto de um paralogismo qualquer, agitam agora, sem porquê, as asas inúteis na esperança de as pôr de novo a voar. A iminência do gesto, cuja gravidade suporta a figura do amor, é‑lhes interdita. Por quem, se Deus já morreu? Nem eles próprios saberão certamente, presos daquilo de que já não há notícia.
Neste tempo insubsistente, esquecida a facilidade da passagem cartesiana do atributo ao suporte, o parecer é rei... e o turista, o seu bobo. Retiradas as máscaras, encontram‑se outras por detrás. E assim por assim, outras mais...
Quando o mapa do mundo se dava a ler e tinha por legenda, de todos conhecida, o rosto da deidade, a semelhança das coisas entre si ajudava à festa da presença. Esta, contudo, ao impor‑se através da pobreza da sua objectividade, mui clara e distinta, gerou o movimento contrário. E por conseguinte, na ausência do que é de sempre, fez‑se culto das flores de um só dia.
Que o ser, na deiscência contemporânea do acontecimento, já não se mantenha estante, não espanta, o que, todavia, não assegura, ao invés do que pensa o turista, a rendição da memória. Conquanto estejamos na época inaudita da caça louca a Mnemósine — como disse o filósofo — e se multipliquem por mil os desertos num despudor alegre, o ser agora diferido na sua diferença não abrirá mão do comércio de Hermes.
Com saudades da casa que nunca teve, o amor, involuntário e anacrónico, traz ainda consigo um segredo por revelar: a substância pode ser uma maneira de pesar o acontecimento — e vice‑versa.
Eurico Carvalho
Texto publicado em Março de 2003
no jornal «O Tecto» de Vila do Conde
(Ano XV: N.º 40). Cf. página 5.
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