domingo, 21 de maio de 2006

PÁGINAS SOLTAS DO DIÁRIO DE UM LEITOR [III]


«Que a infância é estranha, é uma doença imóvel.»
H.H.

III
O ÁLVARO DE CAMPOS, A «NOCAS» E EU
Jardim de S. Lázaro.No Verão de 1976
Não era criança de brincar. Miúdo gordito, de caracóis tristes e andar alegre, ainda antes de ler já encontrava refúgio na leitura das revistas de moda de minha mãe. A seu lado, à soleira da porta (sempre outra por muito tempo), as folheava lenta e sabiamente com o Sol por companheiro. (O meu irmão mais velho, exímio na arte de estar longe das saias maternas, preferia a rua onde era rei e a bola rolava à imagem do mundo.) Quanto aos lugares, houve demasiados, julgo, para deles ter memória ou uma árvore. A infância, é certo, não se compadece com itinerários de longo curso: cultiva a semelhança dos espaços.
Não me lembro de nenhuma macieira cujo tronco fosse meu e servisse de suporte àquelas palavras soltas do amor juvenil — ou pelo qual trepasse em busca de um motor silvestre, ou melhor, onírico. Mas tive um jardim, ainda que público, pois quero crer, como o poeta, «que brincarmos era o dono dele». (Nesse Verão brinquei para sempre, sendo de hoje a tristeza.) Tinha então nove anos. O fim da infância aproximava‑se velozmente do meu corpo, e o jardim de S. Lázaro ficou‑me cá dentro — e a mágoa por fora. A sua beleza, que não encontro igual no Porto, talvez se deva ao desenho romântico. Imediatamente concebido após o Cerco, S. Lázaro ocupa a área de um rectângulo cujos vértices são os portões de ferro que pontuam o gradeamento. Além da flora habitual circunscrita aos canteiros, para não falar das tílias e das camélias vulgares do Norte, são dignos ainda de lembrança o coreto e o pequeno círculo aquático central. Porém, só o tempo como poema estará à altura de ser legenda — honesta e grácil — de tanta simplicidade.
Do lado da Rua de D. João IV, para onde dá saída uma das quatro entradas, ergue‑se o edifício com ar de frade abstracto da Biblioteca Municipal. Na sua velha sala de leitura, cujo cheiro antigo me predispunha para a sacra cerimónia que era para mim o acto de assinar o livro de presenças, passei muitas horas felizes no regaço do Fantasma e doutros heróis do «Mundo de Aventuras». Inteiros volumes devorava, e amarelentos, dessa revista milenar. Devorava‑os com a certeza de haver mais a seguir e de ser interminável a devota devoração. Lê‑los! Que obra‑prima de tardes longas!
Como explico eu a surda sombra de S. Lázaro em mim? É cíclica a sua ressurreição, belissimamente ilustrada com um inolvidável cortejo de imagens, perfumes e sons: o coreto dominical e a música vespertina do regimento; as flores de aroma forte e as árvores lembrando enormes guarda‑sóis; o cicio do repuxo e da conversa dos velhos, versos de uma mesma estrofe anacrónica; o ruído das nossas brincadeiras, quando brincar era brincar na rua, saltar à corda, jogar o jogo do lenço, do eixo, do pião, da sameira, das «caçadinhas» e das «escondidinhas», da «macaca»... — sei lá que mais! E às vezes, sim, o da verdade também.
A minha irmã mais nova nasceu nessa idade. Mas o Verão tornou‑se exemplar por culpa da «Nocas». Recordo‑a somente pelo apelido. Menina de bem e de bibe, filha da dona de uma boutique que por lá havia, lembrava a «Pipi das Meias Altas» por mor das tranças, as quais se ofereciam relutantemente à nossa impertinência de rapazes pouco seguros de si. Deixava‑nos no entanto, a mim e ao meu irmão mais velho, andar de quando em onde na sua bicicleta. Não foi todavia bastante a aprendizagem. Disso padeço ainda hoje: não sinto meu nenhum selim, e todos eles, quando me levam, levam também a «Nocas». Terá sido ela afinal, sem o saber, o meu primeiro amor.

Eurico de Carvalho (Editor)
In «O Tecto», Ano XVII,
n.º 49, Maio/2005, pág. 9

Etiquetas:

0 Leituras da Montr@:

Enviar um comentário

<< Home