terça-feira, 16 de maio de 2006

PÁGINAS SOLTAS DO DIÁRIO DE UM LEITOR [I]



«Que a infância é estranha, é uma doença imóvel.»

H.H.

I

A APRENDIZAGEM DA MEMÓRIA

Ermesinde: 1973‑74

Como se não houvesse memória sem escrita, a infância que vivi longe do alfabeto perdeu‑se, selvagem, no bosque do esquecimento. O que dela recordo são flores secas num velho álbum familiar, além de algumas pétalas de grandiloquência paterna. É um terreno imémore o que fica por detrás de Ermesinde: do Porto a Coimbrões, foram inúmeras as etapas de um percurso incôngruo, difícil. (Dessa volta ao silêncio, cujo término se deu no início da adolescência que nunca quis, pouco resta. Só o Joli, lindo de se ver, saltou dos retratos para o sonho de agora: exemplo infantil de anamnese.) Mas a Ermesinde regresso continuamente como quem vai em busca de um segredo. E o ruído do búzio é sempre o mesmo: três marés ilustradas — a dor, a sua ausência e o prazer.

Falemos primeiro da dor. Quando me vi na escola, infante rebelde às letras, quis fazer da preguiça sofá na sala de aula. Mal me instalei, porém, perdi o trono. Destronado fui por quem havia de ser, célere na denúncia do caso. Passei a ter lições ao pequeno‑almoço. Aprendi a ler sob lágrimas, sufocadas com pão com manteiga. Eram o preço a pagar, quando as sílabas fugiam das palavras sublinhadas pela firmeza materna.

Da dor à sua ausência: isso está em mim como um quadro na parede. Lembra‑me um dia de Sol — e lembro‑me de tê‑lo sobre a cabeça como se fizesse as vezes de um soberbo chapéu de palha. Estava em cima de um muro ao pé de um prédio em construção. Não havia ninguém, somente uma voz que me chamava para a sombra.

Tinha seis anos. O Outono demorava‑se nas árvores. Resolvi descer à rua, sozinho, para tomar um pouco de coragem no Café Central. Em vez de um copo de leite, de que já não gostava, decidi surpreender o criado de mesa: pedi‑lhe um refresco de groselha. Apesar dos seus esforços e do frio da manhã, não mudei de aviso. Conheci assim a natureza do prazer: uma mistura de movimento e despropósito. Com as mãos nos bolsos, e sem o peso de alguns centavos, regressei a casa assobiando como se, entretanto, se tivesse feito mundial o trilho irrequieto dos meus passos de criança.



Eurico de Carvalho (Editor)

In «O Tecto», Ano XVII,

n.º 49, Maio/2005, pág. 9

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