PÁGINAS SOLTAS DO DIÁRIO DE UM LEITOR [I]
«Que a infância é estranha, é uma doença imóvel.»
H.H.
I
A APRENDIZAGEM DA MEMÓRIA
Ermesinde: 1973‑74
Como se não houvesse memória sem escrita, a infância que vivi longe do alfabeto perdeu‑se, selvagem, no bosque do esquecimento. O que dela recordo são flores secas num velho álbum familiar, além de algumas pétalas de grandiloquência paterna. É um terreno imémore o que fica por detrás de Ermesinde: do Porto a Coimbrões, foram inúmeras as etapas de um percurso incôngruo, difícil. (Dessa volta ao silêncio, cujo término se deu no início da adolescência que nunca quis, pouco resta. Só o Joli, lindo de se ver, saltou dos retratos para o sonho de agora: exemplo infantil de anamnese.) Mas a Ermesinde regresso continuamente como quem vai em busca de um segredo. E o ruído do búzio é sempre o mesmo: três marés ilustradas — a dor, a sua ausência e o prazer.
Falemos primeiro da dor. Quando me vi na escola, infante rebelde às letras, quis fazer da preguiça sofá na sala de aula. Mal me instalei, porém, perdi o trono. Destronado fui por quem havia de ser, célere na denúncia do caso. Passei a ter lições ao pequeno‑almoço. Aprendi a ler sob lágrimas, sufocadas com pão com manteiga. Eram o preço a pagar, quando as sílabas fugiam das palavras sublinhadas pela firmeza materna.
Da dor à sua ausência: isso está em mim como um quadro na parede. Lembra‑me um dia de Sol — e lembro‑me de tê‑lo sobre a cabeça como se fizesse as vezes de um soberbo chapéu de palha. Estava em cima de um muro ao pé de um prédio
Tinha seis anos. O Outono demorava‑se nas árvores. Resolvi descer à rua, sozinho, para tomar um pouco de coragem no Café Central. Em vez de um copo de leite, de que já não gostava, decidi surpreender o criado de mesa: pedi‑lhe um refresco de groselha. Apesar dos seus esforços e do frio da manhã, não mudei de aviso. Conheci assim a natureza do prazer: uma mistura de movimento e despropósito. Com as mãos nos bolsos, e sem o peso de alguns centavos, regressei a casa assobiando como se, entretanto, se tivesse feito mundial o trilho irrequieto dos meus passos de criança.
In «O Tecto», Ano XVII,
n.º 49, Maio/2005, pág. 9
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