OS PERCURSOS DO DESEJO
Eros não é uma coisa simples.
Platão
Na Kallipolis de Platão — a “cidade perfeita” —, o Estado, medida de todas as coisas, tudo justifica, até a desmedida e o silêncio dos poetas. Aliás, nessa “morada terrestre do Espírito” (de acordo com a futura terminologia hegeliana), apenas “serão soberanos aqueles que mais se distinguiram na filosofia e na guerra” (A REPÚBLICA: 543a). A cópula, por nós destacada, que liga a sabedoria à morte, adquire neste princípio do milénio, a uma distância enorme da clareza do filósofo (e após o grande remorso de Hiroxima), adquire, dizíamos, uma claridade terrível (a da bomba, claro está) — e cujo significado ultrapassa em muito o estratégico “elogio de Esparta” levado a cabo pelo fundador da Academia.
É, com efeito, o poeta, “capaz, devido à sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas” (A REPÚBLICA: 398a), o inimigo público n.º 1 da utopia platónica. Ser proteico por excelência, o poeta está, pois, condenado a ser expulso da cidade onde é rei o filósofo. (Tudo isto, como é sabido, inscreve-se no quadro mais amplo do antiquíssimo diferendo entre filosofia e poesia, mas a economia deste texto não nos permite ir além da sua referência.)
À figura de Homero, o “educador da Grécia”, segundo a tradição, prefere Platão a do filósofo-rei; por isso mesmo, todo o esforço deste aristocrata de Atenas do séc. IV a.C. terá em vista a consecução de um projecto político que permita o estabelecimento definitivo da ordem intemporal da Razão na Terra, de modo a impossibilitar, entre outras coisas, qualquer julgamento de um novo Sócrates com base em falsos testemunhos aristofânicos.
Se a quisermos definir em poucas palavras, poderemos dizer que a organização política da cidade platónica consubstancia‑se num férreo regime ergonómico: a excelência resultará do exercício da função respectiva de cada um — e nada mais (A REPÚBLICA: 352d‑3c). Assim, nesse país dos funcionários, só a funcionalidade (r)estrita é racional, e, consequentemente, não há lugar para os poetas. Ou melhor: só se admitirá na cidade aquele “servidor das Musas” que as ponha ao serviço do Estado. (O mesmo se passa hoje.) Em termos de música (também no seu sentido etimológico), o “sorriso da Jónia” é preterido em favor da “rigidez dórica”, cujo modelo é Esparta. Tal como no mito, os instrumentos de Apolo venceram os do sátiro Mársias (A REPÚBLICA: 399e).
Como resposta ao escândalo que foi para ele a morte de Sócrates (destinado por um regime democrático a beber a cicuta consignada na lei), Platão exigiu — e a sua filosofia é essencialmente isso, essa exigência — a moralização da política e do seu discurso (inquinado, como estava, no seu entender, pela retórica das assembleias populares e dos “profissionais do saber” de então, detentores de uma polimatia sofisticada). Mas com isso, com essa exigência, conseguiu o quê? Uma série de equívocos: a politização da moral; a justificação filosófica da administração do quotidiano; a institucionalização do “segredo de Estado”, da mentira ao serviço do Poder, do maquiavelismo; a condenação da Arte segundo cânones moralistas, ou seja, na linguagem platónica, a subordinação do Belo ao Bem.
Segundo Lévinas, “a arte de prever e de ganhar por todos os meios a guerra — a política — impõe-se, então, como o próprio exercício da razão” (cf. TOTALIDADE E INFINITO). Lutando contra a tirania do Eros, Platão acaba afinal por nos submeter a uma outra tirania: a do Logos. Ao sonho platónico sucedeu-se assim o nosso pesadelo, o da nossa época: o tempo da mundialização da guerra e da tecnocracia. A ciência pôs-se ao serviço das forças da morte, o cientista tornou-se funcionário dos complexos militares distribuídos pelo globo inteiro, a tecnologia redundou em “tanatocracia” (que sabe a química da vida?), a justiça instituiu-se como um mero apêndice da “gestão dos recursos humanos”, decidindo-se nos moldes de uma lógica subsidiária da gramática administrativa do Estado. O diálogo é substituído pelo silêncio logotécnico...
Pois é: “o instinto do conhecimento sem discernimento é semelhante ao instinto sexual cego — sinal de baixeza!” — diz Nietzsche. Por outras palavras: ciência sem consciência. E em Platão, como iremos ver, não há propriamente uma filosofia do desejo, mas sim desejo de filosofia ou, melhor dizendo, de filo-logia. Platão, o gramático do Inteligível e burocrata do Eros, é, com efeito, o “filólogo” por excelência, o inventor da “nomenklatura” metafísica!
No léxico platónico, Eros, se for libertado de constrangimentos, transforma-se inevitavelmente — como dá a entender o mito de Giges (A REPÚBLICA: 573a-b) — no dono e senhor da alma e faz de si próprio, “escoltado pela loucura”, a essência da psique de um verdadeiro tirano. A grande calúnia de Platão, de que ainda hoje somos vítimas, consiste, pois, na assimilação do Eros ao crime, ao dar “uma explicação completa da génese do homem tirânico”, baseando-se tão-somente na recusa do desejo em submeter-se ao imperialismo da Razão. Sendo a virtude ergonómica, geométrica e não aritmética, como já vimos, fundamentando-se ainda no paralelismo entre a organização da cidade e a da alma (organização, essa, distribuída por patamares que compõem um sistema rigidamente hierárquico com evidentes implicações axiológicas, entre as quais se pode salientar a principal, i.e., a submissão metafisicamente necessária da matéria ao espírito), assim sendo, fácil se torna, de facto, legitimar, ao nível psíquico, a repressão do desejo e, ao nível político, a expulsão dos poetas. E se se pode, na verdade, estabelecer essa ligação entre o silenciamento da voz da poesia e o combate à autonomia do desejo assumido sem cartilhas de qualquer espécie, é porque, então, se concretiza psicossociologicamente o tal diferendo, teorizado por Platão, esse “big brother” da felicidade do colectivo, entre a filosofia e a poesia, a ciência e a arte, enfim, e para nos servirmos do vocabulário do filósofo, entre a anamnesis e a mimesis.
Eurico Carvalho
In «O Tecto»,
Ano XIV, n.º 36,
Abril/2002, pág. 5.
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