AIWAREIKS
(S/l. — s/d.)
Estar triste é a minha maneira de ser alegre. Mas a tristeza em mim, não sendo um estado de espírito, aproxima‑se mais de um movimento da alma, centrípeto e não centrífugo, capaz de alimentar indefinidamente a ficção da interioridade. A força que preside a esse movimento assemelha‑se a uma onda gulosa: arrasta‑me como areia branca para o mar negro, e faz do que vivo um inquérito à morte. Descrente na acção (essa disestesia de que fala o poeta), contento‑me com o circo do mundo. Submisso a uma existência paradoxal, porque centrípeta, atenho‑me à dor como forma de elevação tipicamente religiosa. Nisso, o cristianismo e a sua actualização terapêutica, a psicanálise, parecem‑me irmãos. Ambos procuram o resgate do sofrimento pela linguagem — sem a qual não haveria cultura. Assim se compreendem o verbo e a rosa, futuro da cruz; daí a castração e o seu calvário simbólico: do silêncio do falo à fala.
Sinto‑me Judeu na recusa da imagem, embora saiba que os burros, despromovidos pelos automóveis, já não entram em Jerusalém. Perderam‑se no deserto. Deste, o avanço é certo sobre os carris do progresso. Cultiva‑se penosamente o mau gosto, apocalipse do nosso século demasiado espectacular.
Que fazer? Órfão de uma verdade redonda, vivo sem remédio num tempo em que a cultura se tornou chata. Todos aplaudem o regresso do rei Midas: muda em imagem, cinética ou não, tudo aquilo em que toca. Estará morto o homem, porém, quando a experiência, já não remida pela palavra, for apenas o absurdo da inércia.
EURICO DE CARVALHO
In «O Tecto»,
Ano XVIII, n.º 56,
Dezembro/2006, pág. 13.
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