sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

CENA DIDÁCTICA [V]

A PAIXÃO NÃO BASTA!

(Enquanto professor do Ensino Secundário, gostaria que estas palavras alimentassem a reflexão de quem — liberto das teias da monstruosa aranha tecnocrática da era cavaquista — soube, em Outubro último, apresentar‑se ao eleitorado como paladino da causa educativa. Com efeito, a paixão, só por si, não basta: exige-se acção, cujo cumprimento efectivo implica necessariamente o sério concurso do pensar).

É um facto a crescente diminuição da capacidade do subsistema económico para absorver as novas gerações que atingem a idade adulta, justificando-se assim a tese daqueles que já vêem no desemprego um fenómeno estrutural das sociedades capitalistas avançadas. Se nestas se impõe a sobredeterminação do ser pelo ter e a consequente avaliação da socialização em termos estritamente profissionais, torna-se então manifesto o potencial explosivo do que está aqui em jogo.

Não sendo um corpo isolado, a escola reflecte as condições do seu meio. Enquanto instituição nuclear de qualquer regime republicano democrático, à qual compete a formação de indivíduos capazes de assumir com dignidade e consciência o seu papel de guardiães da “coisa pública”, sofre inevitavelmente as consequências da mudança social a que hoje assistimos — e cujo significado, culturalmente falando, se resume à selvagem mercantilização do saber, agora reduzido à moeda corrente da informação.

Embora os problemas da escola não sejam, por um lado, apenas desta, mas da sociedade no seu todo, somos, por outro, progressivamente levados a pensar que as dificuldades de transição para a idade adulta se devem à incapacidade das instituições existentes (do sistema de ensino, em particular) para desempenhar convenientemente o que se tornou, por força da “demissão dos pais”, em primeiro lugar, numa empreitada muito vasta de socialização. Essa incapacidade institucional (e, por assim dizer, institucionalizada) revela-se especialmente escandalosa no domínio educativo, cujo desenvolvimento — não há quem o negue — passa por ser a suma medida do progresso de qualquer comunidade. Por isso mesmo há que resolver, por exemplo, o problema — que entre nós quase assume contornos “terceiro‑mundistas” — da nova subclasse de escolarizados: uma minoria de jovens cujo precoce abandono do ensino não lhes permite a aquisição de um “capital cultural” suficiente para responder com eficácia às exigências da vida moderna, indo assim engrossar as fileiras da mão-de-obra desqualificada.

Na nossa sociedade altamente especializada e complexa, numerosos agentes ou sistemas de socialização, sem qualquer coordenação entre si, funcionam simultânea e paralelamente. Tendo cada burocracia institucional delimitado cuidadosamente a sua esfera de prerrogativas e influências, multiplicam-se, qual polvo administrativo, os circuitos fechados e as cadeias anónimas de um poder exercido em nome de mecanismos meramente processuais. Estamos perante o florescer do fenómeno mais que discutido da burocratização, cujo sentido se manifesta numa administração galopante do quotidiano, a qual é própria das sociedades modernas em vias de “terciarização” de grande parte das suas actividades económicas. O imperialismo desta gramática administrativa potencialmente totalitária é interpretado, por exemplo, pelo filósofo alemão Habermas, no contexto problemático da “colonização da esfera da experiência”, cuja reprodução simbólica depende cada vez mais da intervenção programática dos meios monetários e burocráticos.

Os problemas da sociedade capitalista avançada de que nos fala Habermas já não são propriamente resultantes da ordem da produção, mas da do consumo. Trata-se, por conseguinte, de uma sociedade de clientes (no antigo sentido do termo). De facto, uma classe de funcionários (aliás, em extensão permanente) tem a seu cargo, desde o berço até ao túmulo, o resto da população. Além disso, o leque de competências dos especialistas não pára de diminuir: já nenhum se ocupa do cliente como um todo. Por outras palavras (mais metafóricas): cuida‑se da doença, mas não do doente. Consequentemente, as relações entre os agentes dos serviços sociais e o cliente tornam‑se irregulares e fragmentárias. Com o risco de transformarem as tarefas que executam numa rede elaborada de medidas de controlo, os funcionários públicos tendem a confundir os interesses da sua função com os seus próprios.

À medida que a família perde importância no domínio educativo e se verifica o aumento das dificuldades de acesso à chamada “vida activa’, a escola acaba por assumir a condição de instituição intermediária e uma missão acrescidamente pesada, cuja execução plena é exigida pelos alunos e encarregados de educação. Estará, no entanto, a escola, enquanto parte sujeita às razões do todo, em condições de responder a essas exigências? Na verdade, o subsistema de ensino — exactamente na medida em que faz parte de um sistema que o ultrapassa — está hoje organizado em função de normas impostas por uma sociedade orientada para o sucesso. Paulatinamente, tornou‑se mais formal e administrativo, sendo muitas vezes concebido à maneira de uma indústria, cujo objectivo consiste no fornecimento de um produto. Resulta disto uma crise na sua organização, que se reflecte, por exemplo, na separação existente — de direito e de facto — entre a família e a escola. Tenha‑se também em conta a rendição contemporânea ao poder do mérito, que faz com que sejam os estudos a principal via de acesso a uma carreira profissional. Deste modo se acentua criticamente a selecção, cujos reflexos se evidenciam no processo de dramatização do insucesso escolar.

A institucionalização da educação formal, cuja história podemos remontar ao século V a.C., aos tempos da Sofística, revela-se (como facilmente se depreende do que ficou dito) indissociável do próprio desenvolvimento da Cidade. Ora, assistimos presentemente à degenerescência semântica e ontológica da ordem política, porque esta se faz gradualmente policial. Impera a lógica ubíqua da máquina burocrática e administrativa do Estado, da qual a escola não é senão uma peça privilegiada. Submetidos a este enquadramento institucional, tanto o docente como o discente se vêem na obrigação de cumprir papéis (respectivamente, o de funcionário observante e o de cliente interessado) com os quais, na maioria dos casos, não se identificam.

Analisando o papel do aluno, que é aquele que aqui mais nos interessa, verifica-se imediatamente que a sua posição na escola, como se disse acima, é a de um cliente, pois deixa‑se instruir e examinar por alguém que, sem qualquer partilha das responsabilidades do trabalho, organizou todo o processo de ensino‑aprendizagem. Tudo isto é típico, como se sabe, do ensino tradicional, que alimenta inconscientemente a ilusão da simetria entre ensinar e aprender. Além do que, do ponto de vista psicanalítico, uma relação educativa estruturada nestes moldes favorece forçosamente a manutenção da pulsão oral, de que o saber será o objecto. Pois bem, o incremento da postura oralizante fundamenta uma relação de consumo com o real, a qual, como é óbvio, é explorada economicamente. (Note‑se que a passagem da adolescência à idade adulta parece ser cada vez mais dificultada por interesses comerciais que procuram fazer da juventude uma clientela).

Como ultrapassar o modo arcaico de relações entre aluno e docente? Porventura através da mutação das relações entre saber e poder, o que implica necessariamente a abolição do “culto totémico” da escola e também uma crítica da corrupção capitalista da função simbólica. Mas esta crítica não pode ser selvagem, como nos parece ser a de um certo “pensamento da diferença” que está hoje na moda, pensamento esse que, recalcando a “morte do Pai”, cultiva o mito de uma fraternidade ilusória sob a bandeira da inominada “paixão do incesto”.

Eurico Carvalho

In «Jornal de Notícias»:

18 de Março de 1996

(pág. 9).

P.S. — Dez anos depois da publicação deste artigo (e apesar de ter sido escrito num contexto político muito particular: o fim do chamado «Cavaquistão»), não perderam actualidade as questões nele levantadas. Donde a necessidade de lhe darmos uma segunda vida.

N.B. — Nota de leitura: o «paladino» de que se fala na epígrafe não é senão, claro está, António Guterres, o primeiro-ministro do XIII Governo Constitucional.

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