O VELHO — PAIXÃO EM TRÊS ANDAMENTOS
(Escrito no ano de 1984 e
lido à L. dois anos depois,
quando um dia se fez chuva
nos seus cabelos.)
1. Reconhece‑se ninguém na atenção nenhuma de toda a gente. Qualquer coisa de vadio possui nele uma admiração: rota de rei. Ignora‑o a rua: submetida a milhares de passos iguais alheia os seus. (Pelo mercado — a meio — vai‑se reflexo o templo da antiga memória.) Moderno de cinza, há Sol com data a sujar as barbas da lembrança. Atrasa o olhar acompanhando a pressa dos outros. É então como criança cruel o estorvo vindo do caminho: pede‑lhe algo em forma de moeda. Acorda, como por acaso, um «Sim!» só com os olhos. A criança, de mais nada, percorre‑lhe o sorriso, e por brincadeira pobre dá de oferta pontapé nas canelas do Velho. Este fica com a alegria, a de perdoar os desertos. Compra flores. Ninguém se conhece, porque ninguém o reconhece.
2. Imediatamente, em câmara lenta, senta‑se no chão (cheio de leituras tristes de pés de pressa). As flores compradas localizam o silêncio. Lugar‑comum da palavra, pássaro desconhecido sobrevoa o espanto da praça. Mas comentários bacteriologicamente puros decidem‑se pelo plágio do gesto do Velho. (Plágio, salvo erro, — dizem — de alguns milénios.) E as flores continuam a localizar o silêncio, e contra a vontade própria as pessoas param. E as flores são perfumadas, e as pessoas param como quem espera um milagre que, no entanto, esperam.
3. Entre tanto de tão pouco, polícia de trânsito choca‑se com o intransitável do silêncio, intérprete embora de flores. E o Velho, algemado, mostrava seraficamente os dentes aos cronistas do futuro. Pois as coisas continuam, e por isso há flores, mesmo que seja estrangeiro o seu perfume.
EURICO DE CARVALHO
In «O Tecto»,
Ano XVIII, n.º 56,
Dezembro/2006, pág. 13.
Etiquetas: PROSA
1 Leituras da Montr@:
4. Trazia um vestido de seda vermelho, costas soltas, ombros ondeantes e aquele sorriso de enlouquecer almas. O Velho pensou que estaria a sonhar, como tantas vezes lhe acontecia, mas foi só quando sentiu o calor dos seus lábios nos dele que o clique se deu, provocando a abertura prematura das algemas, dança de liberdade na condenação corpórea. Olhando agora as suas mãos, decidira “Jamais hei-de ...”. Já ela partira, levando consigo as flores, frias!
De que lhe valia caminhar na sombra do perfume? Prendeu-se às algemas e mergulhou no silêncio da rua.
Vera
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