sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

CENA DIDÁCTICA [VII]

PARA UMA CRÍTICA DO REGIME DISCIPLINAR EM VIGOR

Video lupum.

Datado de 5 de Dezembro de 1997 e subscrito pela Secretária de Estado da Educação e Inovação, Dr.ª Ana Benavente, o projecto de diploma legal relativo ao regime disciplinar dos alunos suscitou então um amplo debate público, do qual resultou o actual código de conduta (cf. Decreto-Lei n.º 270/98 de 1 de Setembro).

Na qualidade de professor de Filosofia, bem ciente do valor dialéctico do leal confronto das ideias, cujo espaço é agora a ágora mediática, contribuí para o processo de discussão com todo o entusiasmo e alguma reflexão. Desta é notícia o escrito que aqui se expõe à crítica de qualquer leitor, seja ele aluno, docente ou encarregado de educação.

Cumprir-se-á em três tempos o desenvolvimento textual: há-de corresponder ao primeiro, sob a égide de Habermas, uma tentativa de enquadramento teórico do ponto de vista do legislador; ao segundo, o sumário das observações por mim tecidas aquando da apresentação pública do citado documento; ao terceiro, por último, uma avaliação do decreto‑lei em causa à luz das alterações introduzidas no dito projecto.

I

Em nome de um ideal, em si mesmo justo, de democratização das relações humanas e das instituições que as suportam, às quais compete o seu enquadramento normativo, assistimos a uma crescente dissolução das diferenças, verdadeiro motor da transformação moderna da sociedade. Trazendo paradoxalmente consigo, por mor de uma rivalidade mimética, a possibilidade de uma maior conflitualidade social, a qual apela, por sua vez, para uma cada vez mais significativa intervenção dos mecanismos jurídicos na resolução dos diferendos, tal indiferenciação acompanha o desmantelamento das formas de vida tradicionais, ou seja, parafraseando Habermas, a colonização da esfera da experiência por parte do Estado. Disto é claro exemplo, segundo o filósofo alemão, o facto de o direito positivo ter tendência para aumentar na nossa sociedade. Com efeito, ganha paulatinamente visibilidade o fenómeno da juridicização de campos de acção dotados de uma estrutura comunicativa e de mecanismos informais de regulação dos conflitos, tais como: família e escola.

Enquanto professor, naturalmente, interessam‑me sobremaneira as consequências, a nível escolar, resultantes do fenómeno em questão. Todavia, a avaliação das mesmas não pode ser linear. Há que considerar a dupla dimensão do processo de juridicização: positivamente, significa a efectivação dos princípios do Estado de direito, a realização das garantias fundamentais dos alunos e encarregados de educação perante a escola e os docentes — e destes últimos e daqueles em relação à administração estatal; negativamente, implica uma burocratização da relação pedagógica, pondo em perigo a liberdade de acção dos professores e dando azo à emergência de típicos «focos infecciosos» de um sistema de ensino massificado e pertinentemente identificados por Habermas: despersonalização, desresponsabilização, desmotivação, inércia, etc.

II

Elaborado por Habermas, mestre último da Teoria Crítica, tal quadro é, sem dúvida, o melhor lugar para se desenvolver um ponto de vista igualmente crítico sobre o referido projecto de diploma legal relativo ao regime disciplinar dos alunos do Ensino Básico e do Ensino Secundário.

Ao invés do que pretendem os seus autores (cujo «novo-riquismo» linguístico, aliás, maculado por algum desrespeito pelas regras de hifenização, mal disfarça a redundância de vários artigos e a vontade de legislar sobre o óbvio...), a autoridade de quem ensina não sai reforçada com o quadro jurídico proposto, mas sim diminuída. Para o provar, bastante será ter em conta os seguintes artigos: 8.°, 14.° e 15.°.

O projecto inscreve-se de um modo natural num surto moderno de juridicização: não contemplando apenas as clássicas «garantias processuais» — que assaz se reforçam —, alarga os direitos de participação dos pais e alunos na elaboração dos regulamentos indispensáveis para o funcionamento da comunidade escolar. Mas são desde já previsíveis os efeitos conjuntos desse reforço e de tal alargamento: a nível administrativo, acentuar-se-á com certeza o peso da máquina burocrática; a nível pedagógico, limitar‑se‑á por certo o campo de acção dos docentes. A este respeito, não deixa de ser exemplar disposto no número um do artigo oitavo:

«O delegado e o subdelegado de turma têm o direito de solicitar a realização de Conselhos de Turma para apreciação de matérias relacionadas com o funcionamento da turma, sem prejuízo do cumprimento das actividades lectivas.»

Talvez esteja aqui o princípio de uma fiscalização «selvagem» do trabalho docente. Se assim for, de facto, estará iminente a abertura de uma nova «boceta de Pandora» no nosso sistema de ensino.

Dada a minudência «escolástica» da qualificação do comportamento discente susceptível de ser sancionado disciplinarmente, torna-se não só ridícula a sua graduação, mas também preocupante. Veja-se tão‑somente a alínea c) do artigo 14.° — e compreender‑se-á porquê: que a «insubordinação relativa a orientações ou instruções do pessoal docente ou não docente» seja um exemplo, para me servir da linguagem do próprio legislador, de um «comportamento considerado leve» (não ultrapassando, pois, a «normal conflitualidade» inerente às relações entre os membros da comunidade escolar) é de bradar aos céus!

Entre as «medidas educativas disciplinares» previstas no artigo 15.° encontra-se a grande inovação deste documento de trabalho: a transferência de turma do aluno indisciplinado. Há razões, porém, para desconfiar da sua eficácia. Só por si, obviamente, a deslocação do perturbador não elimina a perturbação por ele causada e pode até ter resultados contrários aos pretendidos: a potencialização da indisciplina noutro local.

III

Não por acaso, certamente, os aspectos negativos acima acentuados foram, em boa hora, corrigidos ou eliminados pelo diploma legal que explicita o estatuto dos alunos de todos os ciclos e níveis de ensino não superior. Outros se mantêm, no entanto, e entre eles, em primeiro lugar, há que destacar essa indiferenciação relativa aos direitos e deveres de alunos de níveis de ensino inconfundíveis: o Básico, obrigatório e universal, e o Secundário, cuja vertente pré‑universitária é por de mais evidente. Com tal indiferenciação, pedagogicamente insensata, torna-se assaz difícil, por exemplo, a tomada de consciência da legitimidade da distinção entre o estatuto do aluno, o qual resulta apenas de um acto da administração escolar: a matrícula (cf. artigo 2.°), e o papel de estudante, cuja personalidade, ultrapassando de longe a mera dimensão jurídica inerente a uma categoria administrativa, adquire única e exclusivamente substância através do exercício efectivo da aprendizagem.

Por último, transformar, tal como está previsto no artigo 22.°, a ordem de saída da sala de aula numa simples medida cautelar, além de reflectir a diminuição das competências do professor a nível disciplinar, é correr o risco de a banalizar aos olhos do aluno: logicamente, a essa banalização há-de corresponder a perda dos seus efeitos dissuasores, que são, no fim de contas, pedagogicamente falando, os mais importantes.

Não gostaria, porém, de dar por concluída a presente reflexão sem retomar o seu princípio: o surto moderno de juridicização, no qual se enquadra o Decreto-Lei n.º 270/98 de 1 de Setembro, transforma a pouco e pouco a escola, de acordo com Habermas, numa «instituição de assistência à existência» (Daseinsfürsorge). Assim sendo, esquece-se o essencial: se a disciplina é um pré‑requisito da aprendizagem, então a capacidade de ensinar é indissociável da vontade de aprender.

EURICO DE CARVALHO

In «O Tecto»,

Ano XII, n.º 29,

Novembro/2000, pág. 2.

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2 Leituras da Montr@:

Blogger Rosa Brava disse...

Finalmente entrei, mas sendo tarde, deixo a porta encostada para voltar...

Um abraço carinhoso e bom fim de semana ;)

2:23 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

O comentário de cima, é meu... não sei como aparece o nik assim...já deve ser do sono...

Bj :)

2:25 da manhã  

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