segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

CENA DIDÁCTICA [VIII]

O PROFESSOR DE FILOSOFIA: ENTRE SÓCRATES E ALCIBÍADES [I]

Que significa hoje ser professor de Filosofia? Para o totalitarismo ergonómico vigente, eis uma questão cuja resposta se reduz à identificação de uma mera função profissional: ensinar. Assim, sem mais, porém, ainda que seja actual, ou melhor, por isso mesmo, como havemos de mostrar, não a podemos fazer nossa, na medida em que nela, pela via pragmática de um funcionalismo anónimo, se camufla por completo “que é muito contra a natureza da Filosofia que ela seja uma arte de ganhar o pão” (cf. Anúncio das Lições do Semestre de Inverno de 1765-66).

Quem citámos — note-se — praticou-a durante quarenta anos. Há que reconhecer, portanto, a seriedade e o peso dessas palavras de Kant, pela mão do qual, aliás, pela primeira vez na sua história, a Filosofia, abandonando definitivamente o mundo, buscou refúgio institucional no sistema de ensino, tornando-se destarte, de facto, uma tarefa professoral por excelência. (Por aqui se explica, por exemplo, o desprezo nietzschiano pelo “grande chinês de Conisberga”.) Mas não é ela, didacticamente falando, uma tarefa inexequível? Com efeito, segundo a célebre tese kantiana, variamente expressa, “não se pode aprender nenhuma filosofia”, pois ninguém a possui. (E se acaso alguém a possuísse, a sua transmissibilidade, vê‑lo‑emos, adiante, não deixaria de ser um problema.) Consequentemente, “quanto ao que respeita à razão, apenas se pode, no máximo, aprender a filosofar”.

Desta proposição — não se aprende Filosofia, mas a filosofar — resulta logicamente um corolário: a condição de possibilidade do ensino da Filosofia não lhe é exterior, i.e., faz-se mister filosofar para ensinar a filosofar. Por outras palavras: ser professor de Filosofia pressupõe que ele próprio, enquanto sujeito “capaz de auto-uso da sua razão”, tenha filosofado.

A exposição das razões que sustentam tal ponto de vista, de cuja raiz kantiana advém a sua radicalidade, far‑se-á em três tempos: há‑de corresponder ao primeiro uma tentativa de aproximação à essência do ensino; ao segundo, e colhendo os ensinamentos dessa aproximação, a assunção de que, em Filosofia, o ensinável, ao invés do que se passa noutras disciplinas, não se reduz a um mero problema pedagógico; ao terceiro, por último, uma configuração do perfil do professor de Filosofia que responda às exigências filosóficas do seu ensino, não as desnaturando em nome de uma pretensa eficácia didáctica, da qual, aliás, deriva a crescente “tecnologização” do processo de ensino‑aprendizagem.

I

Que é ensinar? Num tempo dominado pelas teorias da aprendizagem de matriz behaviourista, com certeza que se trata de uma questão esquecida, ou melhor, anulada, tanto mais que elas, quando muito, “concebem o ensino como a organização da aprendizagem, i.e., como uma acção simétrica” Significativamente, Skinner, principal representante da corrente comportamentalista, considera que “é possível definir o ensino como o arranjo das contingências de reforço que provocam as modificações de comportamento”, estáveis e duradouras, que constituem a aprendizagem propriamente dita. Nesta definição, claro está, destaca-se o papel do reforço, seja ele positivo ou negativo. Na sua base, como sabemos, encontram-se os dois princípios fundamentais da motivação biogénica: a busca do prazer e a fuga à dor. Tanto esta como aquele desempenham uma função homeostática, mas segundo António Damásio, na sua última obra, “fazem parte de duas genealogias diferentes da regulação vital”. Não sendo, por conseguinte, estados simétricos, “dor e prazer não são o reflexo um do outro”. Enquanto este último “está alinhado com a recompensa e associado a comportamentos como a curiosidade, a procura e a aproximação”, e cuja preponderância no conjunto da actividade do aprendiz deve ser estimulada pelo docente (sem que haja sistematicamente recurso, porém, a uma motivação extrínseca), a dor, pelo contrário, inibindo uma postura activa, “está alinhada com o castigo e associada com comportamentos como o recuo e a imobilização”. Daí que seja prejudicial, do ponto de vista do desenvolvimento do sujeito da aprendizagem, não só o castigo, cujos efeitos indesejáveis são por de mais evidentes, mas também o uso sistemático do reforço negativo. Não por acaso, o próprio Skinner chamou a atenção de quem ensina para as vantagens advenientes da aplicação do reforço positivo, tanto mais que é viável reformular positivamente determinadas ameaças de castigo. Deste modo, sem dúvida, faz-se com outra eficácia a administração pedagógica das consequências das respostas dos alunos.

Em todo o caso, ainda que seja eficaz, o jogo mecânico do reforço, enquanto estratégia didáctica, acaba por impor a confusão entre dois termos, “condicionado” e “aprendido”, promovendo então uma falsíssima equação: ensino = adestramento. “As teorias da aprendizagem arriscam-se, com efeito, a dar a conhecer o docente como o manipulador dos estímulos e dos reforços e o aluno como o indivíduo que reage às solicitações, como aquele cujo comportamento está completamente sob a dependência de estímulos externos” (cf. Postic, Marcel, A Relação Pedagógica, p. 9). Mas o ensino, na sua essência, só pode ser uma iniciação à liberdade, via pela qual, paulatinamente, há lugar à descoberta, por parte do aprendiz intrinsecamente motivado para tal, da sua dupla condição de sujeito: sujeito à autoridade do mestre (e não à sua influência autoritária...) e, consequentemente, sujeito a ser autor de si mesmo. Consequentemente, porquê? Porque compete a quem ensina “fazer aprender”. (É por isso que ensinar, para Heidegger, que o caracteriza num texto que havemos mister de citar, é mais difícil que aprender) Que o sujeito da aprendizagem o seja, de facto, eis a tarefa fundamental do ensino. Por outras palavras: se “ensinar” significa, de acordo com o seu étimo, “pôr em signos”, com certeza que é preciso que esses signos, inscritos na memória e entendimento do aprendiz adquiram o estatuto de autêntica assinatura da sua própria existência.

Eurico de Carvalho

In «O Tecto»,

Ano XIII, n.º 32,

Maio/2001, pág. 2.

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