PÁGINAS SOLTAS DO DIÁRIO DE UM LEITOR [VII]
CARTA A UMA AMIGA QUE NUNCA ME ESCREVEU
Ericeira. — 14 de Outubro de 198...
Ana:
Aconteceu-me um dia escrever a uma amiga de perfil egípcio, que dá erros ortográficos, sobre a facilidade cursiva da amizade e da permanência dos cisnes na minha cabeça. Tu és um desses cisnes.
Não me entendas mal. Quando converso contigo, sinto o coração cheio de aventuras, mas, no contá-las, descubro‑lhes o ridículo de já tê‑las escutado algures. Não sei porquê, o roteiro das minhas palavras condena-me a fazer‑te turista do meu percurso, supinamente inútil e gasto. Quantas vezes? E eu, isso não quero: embebedar‑me de mim próprio, com ressacas da manhã cada vez mais custosas. Também falas pouco. Deixas‑me sozinho demasiado tempo com a minha linguagem de bombeiro voluntário de mim mesmo.
«Tens a dignidade do preto-e-branco!» — lembras-te? Mas é verdade. Ao certo, não sei se compreendeste. Disse-te isso com a mesma franqueza impotente de um Beethoven, quando ele, de súbito, nas suas cartas, substituía os lexemas poluídos por notas de música. Se eu fosse artesão da imagem, fá‑las‑ia de maneira a perceberes como te olho no cinema das coisas ditas.
Esta não é uma carta de amor, como é bom de ver, porque não sou músico. Entender-me-ias de uma forma errónea se a lesses assim. Mas há um lugar por descobrir, não sei como ou quando no mapa do mundo conhecido, entre o «amor» e a «amizade» dicionarizados pelo quotidiano de bolso: um lugar em busca de um nome para nele estacionar a alma sem receio da polícia de trânsito. Eu queria esse lugar para nós, embora corra o risco de pluralizar a pessoa sem teu consentimento.
Escrevo‑te, e é primeira vez. Não sei se faço bem em fazê‑lo. Por de mais me assusta o não conhecer-te ainda, ou conhecer apenas o lado iluminado da Lua. Mostrar-me-ás o outro?
Eurico de Carvalho (Editor)
In «O Tecto»,
Ano XVIII, n.º 55,
Abril/2007, pág. 6.
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