terça-feira, 17 de abril de 2007

PÁGINAS SOLTAS DO DIÁRIO DE UM LEITOR [V]

O PÁSSER DO HOMEM DO LEME

Foz do Douro. — 13 de Agosto de 198...

Passa hoje no cinema das coisas feitas o sexto aniversário do meu primeiro beijo. E este seria (disso não duvido!) um começo assustadoramente frívolo, digno talvez de uma redacção escolar, não fora o caso de ser verdade.

Resolvera num dia de Sol claro chamar‑lhe Pásser por ser assim breve em ave o que nela havia de mulher. Era este, no entanto, antes de a ver voar, um alimento de que não queria ter fome. Jejuava ainda na mágica posição de Outono, quando a encontrei pela primeira vez num sarau vespertino e fora de portas (organizado por uma companhia teatral da cidade com o nobre intuito de promover o devaneio entre os jovens). (Foi, quero crer, na condição de bom filho da melancolia que me convidaram a participar nesse torneio de versos, o qual teve como palco os jardins — então abandonados — do Museu Nacional de Soares dos Reis.) Tudo isto sob a presidência musical de um bravo solstício de Junho.

Das palavras que, por entre restos de troncos de árvore e esculturas partidas, nesse dia alado dela se soltaram — nada direi. Porque só mais tarde reconheci a sua letra. Muito antes de Agosto, porém, deu‑se o reencontro em Outubro, embora fosse sua a surpresa, e não minha, por estar no Campo Alegre. Mas só no fim do mês de Abril, por mor de um concurso de poesia, as nossas vozes, prenúncio do futuro que houve, se fizeram ouvir por nós.

Pásser ensinou‑me a ler o Verão para lá do Outono. (Foi a minha Diotima.) Em seu nome, além da doutrina dos livros, disse adeus ao humor merencório de sempre e perdi o leme sem atraso. Isto apenas num só dia — e mais sete. Bastou-lhe a língua real e as mãos que tinha, ágeis como um esquilo do bosque, para me fazer converso do desejo em flecha, cujo arco viril dominava à imagem do arqueiro de outrora. E eu, que me guardara do Mundo no cume irrespirável do Destino, à semelhança da Virgem superior, justifiquei‑me — e desci finalmente a Montanha. O exemplo que buscava encontrei‑o na areia, nesse seu corpo sábio: resumo vivo da Renascença que já não há nem se quer.


Eurico de Carvalho (Editor)

In «O Tecto»,

Ano XVIII, n.º 55,

Abril/2007, pág. 6.

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