sexta-feira, 2 de março de 2007

UMA CARTA DE NUNO TEIXEIRA NEVES

Na página sete deste jornal, na sua última edição, surgiu um artigo meu, «O Anjo, o Turista e o Vagabundo», de cujas ideias quis o destino alguma publicidade, à qual devo, aliás, a alegria de uma carta de um ilustre leitor: o Nuno Teixeira Neves. Deste injustamente desconhecido ensaísta nortenho já dei aqui notícia a propósito de uma obra sua: Por um Novo Príncipe com Orelhas de Burro. Aquando da saída desta recolha de textos originalmente publicados no «Jornal de Notícias», Eduardo Prado Coelho, na sua crónica semanal (cf. pág. 47 da Revista do «Expresso» de 19 de Agosto de 1989), assinalou o facto com justas palavras: «Só pode ser motivo de regozijo que, finalmente, as editoras e a imprensa cultural descubram a obra de um dos mais inteligentes, sugestivos e produtivos ensaístas portugueses (embora Teixeira Neves se tenha prejudicado a si próprio ao apresentar-se sempre como um jornalista diferente, e nunca como o escritor e ensaísta que efectivamente é)». Não pode naturalmente deixar de as subscrever na íntegra quem, como eu, teve o prazer maior de ler, por exemplo, e durante anos a fio, a brilhante coluna dominical «Ser Cidadão». Quanto à dita carta, ei‑la:

«Pela parte que toca às minhas razões, o que eu encontro no seu texto é a marca do espírito cultural de elite, a prevalência da cultura erudita, mesmo do aristocratismo de Nietzsche, que odiava o jornalismo ou, melhor, o desprezava. E, no entanto, é tudo uma questão de cada um não absolutizar o pensamento próprio nem considerar completas as suas análises seja do que for. Aliás, Nietzsche dava lugar ao cristianismo e à mediocridade, sabendo apreciar‑lhes as vantagens, ainda que não tivesse centrado nessa preocupação o seu pensamento. Assim, o que você diz sobre o turismo está certo, assim como está certo o que diz sobre o jornalismo. Só que o turismo tem que ser abordado ainda sob outros ângulos igualmente legítimos e a verdade está apenas no jogo dinâmico dessas várias abordagens. Por ele verifica‑se quanto uma abordagem isolada é incapaz de nos fornecer a verdade, nem sequer aproximada.

«Mas, mesmo entrando só em conta com o tipo de análise que você fez do turismo, haveria que tomar o tema dinamicamente e considerá-lo na medida em que é um desafio ao que você chama a vagabundagem. Pode-se ser do mesmo modo vagabundo antes e depois do desenvolvimento do turismo? Não, com certeza. O vagabundo foi levado pelo turismo (e ambos pelo jornalismo, o que já no romantismo) a descobrir-se e sondar-se a si mesmo e buscar nas suas profundezas o salto ou o impedimento para o Outro. Ora isso corresponde a um papel positivo do turismo, que teve um papel importante no estabelecimento de uma consciência planetária e por essa via serviu e serve a causa da paz. De resto, há vários graus de turismo e mesmo no turismo massivo, o mais acéfalo, não é tudo mera folclorização. O turismo pode até contribuir para a desfolclorização dos juízos na medida em que surpreende por toda a parte o mesmo tipo de desenvolvimento. Há uma maneira diferente de o turismo sonegar o Outro ou de ele ser sonegado pela falta de contactos: este modo facilita o espírito de guerra, aquele facilita o espírito de paz porque fica sempre algo do Outro como próprio, além de que alargar a geografia do prazer é contrariar a guerra.

«O que eu desejaria é que você fizesse com o turismo e o jornalismo, que são produtos do desenvolvimento da técnica, o que Heidegger ensina a fazer com esta ao considerá‑la como um grande desafio à poesia. Mas eu não considero só essa necessidade mas também a necessidade de um desafio feito à ética. Assim, se você diz que ‘o jornalismo é pura tagarelice’, eu penso que haverá que saber se a essência do jornalismo coincide com essa afirmação e, ainda, que saber se o jornalismo não pode, inclusive, desafiado pela sua própria tagarelice, ir para além da sua essência, atingindo o nível do testemunho ético, como um modo de converter o universalismo opinativo abstracto, filho do medo, em uma forma de presença concreta actuante, um modo legível de ligar o eterno e o actual.

«Claro que na medida em que você considera que o cristianismo nega a vida e o faz por intermédio da ética você está prevenido contra toda a possibilidade de dignificar o massivo, cruzando a cultura individual e a participada mediante testemunhos exemplares que, no passado, se chamaram Cristo e Francisco de Assis, e já antes, os profetas e Moisés. O pensamento de Nietszche não nos daria possibilidade de resolvermos o problema do fosso entre cultura erudita e cultura jornalística, mas é em nome da vida que esse problema tem que ser resolvido, porque o vigor do massivo é inegável e a sua contribuição para o desenvolvimento das sociedades. Aliás, Nietzsche só é compreensível como um ‘repto’, não como um ‘mestre’. Ele é um marco, não um começo.

«Creia que para o entendimento da dinâmica do mundo é necessário considerar equitativamente o jogo entre anjos, turistas e vagabundos, e até outras figuras culturais do drama histórico, e que é um vício de pensamento reduzir cada grupo às únicas possibilidades de um esquema, por muito inteligente e adequado. A verdade é plural, e se não podemos viver sem a tradição helénica, também não nos podemos desfazer da tradição cristã e da tradição moderna, estas duas, ambas responsáveis pelo fenómeno de massificação da cultura. Elas são também expressão do humano e a sua desumanidade é como a do mendigo acerca do qual Vicente de Paula dizia que precisamente porque ele era perverso é que Cristo vinha apelar por seu intermédio — porque, assim, era maior o desafio do Outro. Não há que condenar e desclassificar, mas sim aceitar o jogo e os seus desafios. Incluir, não excluir».

Confesso que não tenho a obsessão de incluir, a obsessão do Todo!, que me parece típica do pensamento dialéctico, pensamento a que eu chamo «digestivo» por não deixar nada de fora. Ora, como disse exemplarmente Adorno, filósofo alemão, «o Todo é a mentira». E não foi Pasolini quem afirmou que a tolerância é por vezes intolerável? Mas a resposta completa a esta bela epístola será dada num futuro artigo.

Eurico de Carvalho

In «O Tecto»,

Ano XII, n.º 27,

Maio/2000, pág. 7

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