quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

CENA DIDÁCTICA [X]

O PROFESSOR DE FILOSOFIA: ENTRE SÓCRATES E ALCIBÍADES [III]

III

Da determinação kantiana da essência da Filosofia — “simples ideia de uma ciência possível, que em parte alguma é dada in concreto” — resulta uma significativa consequência pedagógica: a subalternização dos conteúdos programáticos. Com efeito, o aluno “não deve aprender pensamentos, mas aprender a pensar”. Sabemos bem que este imperativo kantiano, mal compreendido, se tornou o Leitmotiv de muitos professores de Filosofia, que acabaram por separar o inseparável: o pensar e os seus conteúdos. Nesta separação — que tão-somente promove a tagarelice — viu Hegel, com acuidade, o “erro pedagógico” por excelência: “Segundo a mania moderna, sobretudo da pedagogia, não importa tanto instruir-se no conteúdo da filosofia quanto aprender a filosofar sem conteúdo; isto significa mais ou menos: é preciso viajar e viajar sempre, sem chegar a conhecer as cidades, os rios, os países, os homens, et cetera.” Desta absurdeza não é Kant, contudo, responsável. Para ele, aliás, não há Selbstdenken — pensamento autónomo — sem aquilo a que Hegel chamou, na sua linguagem, “trabalho do conceito”. Por outras palavras: subalternizar pedagogicamente conteúdos não implica, de modo algum, a sua eliminação, porque não é possível, sem dúvida, pensar no vazio nem a partir do zero. Pensar no vazio só pode significar, de facto, o vazio do pensamento.

Que haja na aula de Filosofia — e cada vez mais! — alunos “indóceis”, isto é, indisponíveis para tal trabalho reflexivo, isso é um mal decorrente da época em que vivemos. Mas “instruir os professores no sentido de que sejam conviviais, preconizar a sedução, prescrever que captem a indulgência das crianças através de estratégias demagógicas ou ‘gadgets’, é pior do que o mal” (cf. Lyotard, «Mensagem a Propósito do Curso Filosófico» in O Pós-Moderno Explicado às Crianças). Há que não confundir, por conseguinte, a recusa do dogmatismo, ou seja, da autoridade “multisciente” do ensinador tradicional, incapaz de ser mais “dócil” que o aprendiz, com a apologia fácil de uma comunicação edificante. A figura exigente e “dócil” do pensador, à qual deve corresponder o perfil ideal do professor de Filosofia, não pode ser substituída (em nome de uma pretensa eficácia didáctica) pela figura extravagante e ‘mediática” do sedutor. Na verdade, seria o cúmulo que, na impossibilidade de ser Sócrates, o professor de Filosofia fosse, parafraseando Lyotard, o Alcibíades dos seus alunos. Realmente, “resolver as tensões [resultantes da “indocilidade” discente], conformando-se com o desejo dos alunos, levaria o docente a cair na demagogia para ‘agradar’ ao aluno” (cf. Postic, A Relação Pedagógica, pág. 157). Ora, de acordo com Kant, “não se deve levá-lo [i.e.: seduzi-lo], mas guiá‑lo, se se pretende que ele seja capaz de caminhar por si mesmo. É uma maneira de ensinar deste tipo [que assume sem complexos a directividade inerente ao acto pedagógico] que exige a natureza peculiar da Filosofia” (cf. Anúncio das Lições do Semestre de Inverno de 1765-1766). Enquanto saber que se procura, o seu método de ensino há-de ser, pois, zetético.

Eurico de Carvalho

In «O Tecto»,

Ano XIII, n.º 34,

Outubro/2001, pág. 5.

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