sexta-feira, 23 de março de 2007

EDITORIAL [I]


Em todo o ciberespaço, novo Oeste, cresce à velocidade do colibri a comunidade dos cidadãos da blogosfera, território prenhe de sementes de uma democratização da palavra. Para o mal e para o bem, alcança agora a ágora os limites do mundo inteiro. Nela, pela disponibilização de ferramentas de uso fácil, tornou‑se possível a construção de nichos de comunicação independente dos mecanismos de controlo institucional da opinião pública. Trata‑se, segundo alguns, de uma nova fase de desenvolvimento da Rede. Para que possamos compreendê‑la melhor, devemos conhecer a origem do fenómeno. A este respeito, vejamos o que nos dizem Hardt & Negri (cf. Império, pág. 332):
«A Internet, que começou por ser um projecto da DARPA (US Defense Department Advanced Research Projects Agency) e se alargou, de seguida, de modo a incluir o mundo inteiro, é o primeiro exemplo de uma estrutura em rede democrática. Há um número indeterminado e potencialmente ilimitado de nós interconectados que comunicam sem ponto de controlo central, e todos esses nós, independentemente da sua localização territorial, se ligam a todos os outros através de uma miríade de vias e articulações transmissoras. A Internet assemelha-se assim à estrutura das redes telefónicas e, de facto, integra‑as de uma maneira geral enquanto vias da sua própria comunicação, do mesmo modo que utiliza a tecnologia dos computadores nos seus pontos de comunicação. O desenvolvimento dos telemóveis e dos computadores portáteis, multiplicando ainda mais os pontos de comunicação da rede, intensificou ao mesmo tempo o processo de desterritorialização. O propósito original da Internet era enfrentar uma ofensiva militar. Uma vez que não tem centro e praticamente qualquer uma das fracções pode operar como uma totalidade autónoma, a rede pode continuar a funcionar até mesmo depois de uma sua parte ter sido destruída. O mesmo elemento concebido para garantir a sobrevivência, quer dizer, a descentralização, é também o que torna tão difícil o controlo sobre a rede. Uma vez que não há ponto na rede que seja necessário à comunicação entre os outros, é difícil, no seu âmbito, regular ou proibir a comunicação entre os diversos pontos. É a este modelo democrático que Deleuze e Guattari chamam um rizoma, uma estrutura em rede não hierárquica e não centralizada.»
A desterritorialização inerente à Rede, modelo totalmente horizontal, sublimou‑se, sem dúvida, nesta flor inesperada: a blogosfera. Contudo, perante a multiplicação bilionária de blogues, urge reflectir sobre o seu impacto na paisagem mediática. Assistimos, por exemplo, à dessacralização da figura do jornalista. Não há quem não lhe queira vestir a pele. Tanto a produção como a divulgação de notícias e opiniões deixaram de ser propriedade exclusiva dos media tradicionais: imprensa, rádio e televisão. Com efeito, sem nenhuma cobertura institucional, cada um de nós, sob os auspícios da Rede, poderá alimentar a formidável corrente da actualidade. A exigência de interactividade tornou‑se o «grito de Ipiranga» dos internautas. Acabou o monopólio dos meios de difusão de informação! A mera recepção de mensagens já não satisfaz o cliente de serviços audiovisuais. Em pleno século XXI, digamo‑lo cruamente, o exercício da cidadania não se reduz à defesa dos direitos do consumidor. Há uma frente de batalha que se abre em torno da garantia de acesso aos meios de produção virtual. O risco do analfabetismo informático, com o qual se conjuga o da exclusão do acesso à Rede, é demasiadamente sério para não ser tido em conta pela agenda política dos nossos governantes. Devemos lutar, porém, contra a redução eleitoral destes problemas, combatendo o discurso edificante e espumoso das palavras de ordem.
Mas nada disto está isento de riscos. Ainda estamos longe de uma regulação saudável do ciberespaço! A proliferação das fontes, sob a capa inviolável do anonimato, gera o ruído e a irresponsabilidade. Por outro lado, a fragmentação dos universos de referência (resultante do recolhimento de cada um de nós na sua concha internáutica) produz incertezas cognitivas e axiológicas, desencadeando as mesmas, em última instância, um processo de erosão progressiva da coesão social. Talvez esteja aqui um dos maiores desafios da democracia, cuja crise de legitimidade, sendo hoje inegável, não deve ser varrida para debaixo do tapete da globalização. Contra os arautos do neoliberalismo triunfante, repugna‑nos a ideia da subordinação da política aos ditames da economia. Seria a inversão de todos os valores, com a inevitável administração das coisas a cavalgar a autonomia dos homens.
Dada a natureza multipolar e acêntrica da Rede, a sua simples existência constitui uma promessa de liberdade. Quando apelamos para a sua regulação, não pretendemos eliminá‑la nem subordiná‑la aos interesses dos governos e empresas multinacionais. Esse perigo, aliás, é bem real: «está já a caminho uma centralização maciça do controlo através da unificação (de facto ou de jure) das componentes fundamentais da estrutura de poder da informação e da comunicação: Hollywood, Microsoft, IBM, AT&T, e assim por diante» (op. cit., pág. 333). Apesar de tudo, perfilhamos a esperança de que, no domínio do ciberespaço, se mantenha a blogosfera, pelo menos, como núcleo de pensamento radicalmente livre. Em relação às auto‑estradas da informação, não são aceitáveis portagens arbitrárias. Embora as «razões de Estado», o moralismo serôdio e a ganância do lucro tendam a impor‑se junto da opinião pública (ou melhor: publicada), vale a pena insistir na urgência de uma circulação mundial das ideias, libertando-as da canga de putativas «taxas alfandegárias» da mais miserável espécie. É tempo de levantar a voz: «Cibernautas de toda a blogosfera, uni‑vos!»

Eurico de Carvalho

In «Jornal dos Arcos», n.º 4 (Março de 2007), pág. 2.

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