quinta-feira, 8 de março de 2007

TURISMO E EROTISMO — Em diálogo com Nuno Teixeira Neves

Lendo agora, com outra atenção, as observações de Nuno Teixeira Neves, concluo que não devo ter sido suficientemente explícito no desenvolvimento da minha «ficção dramática», pois a reflexão que toma como objecto o turismo só se compreende, de facto, em contraponto com o erotismo («o problema dos problemas», no dizer de Bataille).

O anjo, o turista e o vagabundo passam por ser, na verdade, figuras, mas não no sentido hegeliano do termo, ou seja, não são figuras da consciência. São, sim, figuras da imaginação, cuja essência nunca é inteiramente própria, já que faz parte do tempo. Por conseguinte, a historicidade intrínseca a essas figuras, não sendo embora arbitrária, não pode ser desrespeitada em nome da sua integração no devir necessário do Espírito. Com isto, é claro, também quero dizer que, para além daquelas que eu assinalei, outras figuras históricas haverá com certeza no palco do mundo. No entanto, a meu ver, a determinação destas figuras fundamenta-se na sua riqueza interpretativa, em função do presente e da — maior ou menor — resistência do objecto, que é sempre o limite de qualquer metodologia. Além do que, o jogo entre anjos, turistas e vagabundos é muito mais complexo e dinâmico do que dei a entender na sua apresentação, necessariamente sumária. Com efeito, a nossa compreensão dos anjos não deve ser a dos turistas — e vice‑versa. Nem queremos passar por anjos nas tabernas nem por turistas nas igrejas. Tudo isto exige um entendimento mais subtil do que é e não é, ou não fosse o real aquilo que sempre ultrapassa as nossas ficções e juízos de valor, tendo estes apenas o significado de uma mera aproximação, o máximo a que podemos aspirar com alguma legitimidade.

Contra a obsessão do Todo, julgo que o jogo do mundo também se faz de exclusões. Em boa verdade, o simbólico — o que liga —, para se manter vivo e evitar a queda no folclórico — o inerte, que não ata nem desata —, apela também ao diabólico — o que separa. Tanto o angelismo como o diabolismo são modos ingénuos de pensar o que deve ser pensado: a relação inesperada do real com a realidade. Por isso considero que a presença de Deus no mundo não deve ser absolutizada, sob pena de o Ser se confundir com o que é igual a si próprio, no eterno repouso do Mesmo. Rejeito outrossim a hipótese contrária, ou seja, a admissão de uma multiplicidade totalmente desligada — o império de uma alteridade ab-soluta, abstracta. Enfim, o real nunca se realiza por completo: há sempre um resto que fica de fora. Por outras palavras, de certo mais sugestivas, o diálogo entre Deus e o Diabo não tem fim nem finalidade — um «happy end» metafísico —, isto é, não há Juízo Final. Afinal, talvez a sabedoria consista em assumir, quando necessário, o papel de «advogado do Diabo» — para bem de Deus.

Quando se entende a diferença de um ponto de vista hegeliano e se lhe dá a conotação guerreira da contradição — o que faz com que o Outro surja da negação do Mesmo —, dá-se então ao mundo um motor muito particular: a guerra, indispensável à «saúde dos povos», ainda segundo Hegel. Por outro lado, a contradição é sexual; a diferença, erótica. O erotismo terá portanto como princípio filosófico o pluralismo nietzschiano — que não é dialéctico, embora possa tomar as aparências da dialéctica, como diz Deleuze —, e não a dialéctica hegeliana. Com efeito, é na justa medida em que a contradição está sobredeterminada pela oposição dos sexos que ela se resolve na reprodução. Ora o erotismo, no meu entender, jamais se reduz a «um signo tristemente carregado com o seu significado» (Barthes). Tem a dignidade do conceito, na acepção hegeliana da palavra, pois tenta acompanhar o «movimento da própria coisa». Contudo, ao invés do sentido totalizante do pensamento hegeliano, o erotismo não é algo passível de uma síntese tranquilizadora que envolva a «verdade do todo». Na verdade, como disse algures Nietzsche, o todo é o que deve ser esmigalhado: o todo não existe senão em abstracto.

Repito o que já disse no início: o erotismo é o problema dos problemas. Agora, o meu problema é pensá-lo fora da dialéctica, mais precisamente, fora da dialéctica batailliana do interdito e da transgressão (a Aufhebung: conservação e superação do limite). Esta última já não tem validade hoje em dia. O sentimento do sagrado, essencial a essa dialéctica, perdeu-se, muito por culpa do cristianismo. Este, ao limitar o sagrado à esfera do divino, encurralando-o no interior das igrejas, tem contribuído paradoxalmente para a crescente «higienização» e «mundanização» do mundo. De elemento da experiência, sendo até a sua condição de possibilidade, o sagrado, ao transmudar-se em dogma, degradou‑se e ganhou contornos de positividade morta, para gáudio dos «vendilhões do templo». Assim, a ciência do divino — a teo-logia — substitui a experiência re-ligiosa do sagrado. A medida do deus único não podia suportar a desmedida dos deuses antigos. Expulsos da Terra, o riso deu lugar ao sério. Sozinho, no céu distante — o «deus estrangeiro» de que falava Hegel: o finito separado do infinito. Por isso Deus morreu. Mas os seus descendentes continuam bem vivos: o regime falocrático, o reino do trabalho e da claridade.

Com o seu «romantismo das origens», tipicamente heideggeriano, Bataille tentou resolver existencialmente o problema da manutenção do sagrado num mundo sem Deus. Levando até às últimas consequências a dialéctica de Dostoievski («se Deus não existe, tudo é permitido»), o «filósofo maldito» cai inevitavelmente no abjeccionismo. Com efeito, a experiência do(s) limite(s) do sagrado, do proibido — ainda nos é dada, segundo Bataille, pelo horror das excreções (uma das três características que definem o humano; as outras duas são a consciência da nudez — normalizada e naturalizada pelo olhar clínico de uma sociedade «medicomaníaca» e «somatocrática», cujo eixo axiológico fundamental se determina a partir do hedonismo sanitário vigente — e a da morte, recalcada e esquecida...). E se o limite, parafraseando Hegel, só existe para ser ultrapassado...

Por último, e para terminar, quando o Nuno Teixeira Neves considera que o alargamento da «geografia do prazer» é uma forma de contrariar a guerra, ou seja, por outras palavras, quando vê no turismo um contributo para a paz, não estará a repetir, sem o saber, a conhecida tese do liberalismo, segundo a qual o comércio — o do prazer, neste caso — favorece a estratégia de pacificação do mundo? Ora, a paz mantida pelos automatismos mercantis é uma paz dependente da ordem das coisas. Em suma: heteronómica. Além disso, a ideia de um mercado absolutamente auto‑regulado não passa, como se sabe, de uma ficção social cujo princípio se anula a si próprio. Com efeito, a economia de mercado só pode manter-se e desenvolver-se através de uma constante intervenção dos aparelhos reguladores do Estado, o que Hegel, noutra perspectiva, já tinha posto a nu. Mas não é preciso ler Hegel para chegar a tal conclusão. Basta ter em conta os efeitos perversos da chamada «globalização», tema que merece com certeza a atenção de quem se preocupa com a justiça social.

Eurico de Carvalho

In «O Tecto»,

Ano XII, n.º 28,

Agosto/2000, pág. 5.

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