O DESEJO, O PEDIDO E A NECESSIDADE [II]
A «proibição do incesto» é «aquela [lei universal] que, regulando a aliança, sobrepõe o reino da cultura ao reino da natureza, votada à lei do acasalamento»[i]. Na nossa sociedade, como sabemos, ela está centrada na figura paterna. Daí o laço, sublinhado por Lacan, entre o simbólico e a paternidade. Com efeito, o Pai é o Outro que, proibindo o incesto, mediatiza a relação da criança com o objecto primitivo do seu desejo, o que implica que deixe de ser o falo (o que falta à Mãe e ele completa imaginariamente) para o ter simbolicamente, i.e., não só como símbolo da diferença sexual, cuja irredutibilidade garante a impossibilidade de uma harmonia preestabelecida entre os sexos, mas também como o significante privilegiado que dá a razão do desejo, libertando‑o de um gozo já perdido: o gozo incestuoso. Aqui está, em suma, a verdadeira função do Pai: unir — e não opor — o desejo à Lei (Palavra igualmente reconhecida pela Mãe), sem a qual, aliás, instituída a confusão entre relações de parentesco e relações de aliança, não haveria lugar para a troca simbólica: a fala. É ela que permite identificar o sujeito e ligar os homens ente si.
II
Retomando um tema hegeliano por excelência, Lacan não se cansa de insistir na tese fundamental da sua doutrina: o desejo do homem é o desejo do outro. Como toda a fórmula lacaniana, é preciso saber manejá‑la com cuidado, pois nunca admite uma leitura linear, tanto mais que ela, em primeiro lugar, pode ser desenvolvida em dois planos distintos: o imaginário e o simbólico. Na verdade, se o desejo implica uma referência necessária ao outro, isso significa que «esse próprio desejo, para ser satisfeito no homem, exige ser reconhecido pelo acordo da fala ou pela luta de prestígio». Originalmente, antes que aprenda a reconhecer‑se pelo símbolo, que é pacto, o desejo surge a partir de uma confrontação com a imagem, i.e., não existindo neste momento primordial senão imaginariamente, confusamente se projecta no outro, alienando-se. Toma‑se por isso consciência do desejo através da imagem do outro, da qual o sujeito recebe o «fantasma» do domínio do seu corpo. É deste modo assumida a imagem da forma do outro: forma vazia do próprio corpo. Só assim o homem se reconhece como corpo. Em consequência, «tudo o que está então nele no estado de puro desejo, desejo originário inconstituído e confuso, aquele que se exprime no vagido da criança — é invertido no outro que ele aprenderá a reconhecê‑lo». E no mesmo passo do seu primeiro seminário, distinguindo a anterioridade lógica da cronológica, Lacan apresenta um esclarecimento decisivo: ainda não realizou tal aprendizagem por uma razão muito simples — a sua condição de possibilidade é o jogo da comunicação, quando se dá a abertura ao grande Outro, lugar de onde procede a linguagem.
Entretanto, durante a relação imaginária inerente à «fase do espelho» (devendo esta ser compreendida como uma identificação no sentido analítico do termo) o desejo alimenta‑se de uma rivalidade mortal: dada a ambivalência da identificação imaginária, o objecto é motivo de uma disputa mimética, ou seja, interessa ao sujeito na medida em que desperta o desejo do outro, seu semelhante. Daí (lembra‑nos algures Jacques‑Alain Miller, grão‑mestre dos lacanianos) o carácter histérico do desejo humano. Resta‑lhe então uma única saída (Hegel dixit, sublinha Lacan): a destruição do outro, a sua morte.
Felizmente, segundo Lacan, o verdadeiro outro em jogo no desejo não é o «alter ego», o pequeno outro. É, sim, o Outro. Se não existisse essa dimensão de exterioridade susceptível de sobredeterminar simbolicamente o sujeito, este apenas seria capaz de se apreender como Eu, «doença mental do homem», projectando o seu desejo e impossibilitando assim qualquer coexistência pacífica. Mas Lacan afirma com clareza, pressupondo o domínio do simbólico sobre o imaginário, a precedência do pacto relativamente à violência: «graça a Deus, o sujeito (já) está no mundo do símbolo, ou seja, num mundo de outros que falam». De facto, antes de sermos falantes somos falados por todos aqueles que nos rodeiam e aos quais cabe a tarefa de traduzir para nós as regras da nossa cultura, cuja ordem é formalmente idêntica à da linguagem, à qual se acede pela via da metáfora: mediante o nome que a sociedade lhe atribui, o sujeito é representado por um substituto, por um significante. Em todo o caso, «esta promoção da relação do homem com o significante nada tem a ver com uma posição ‘culturalista’ no sentido vulgar do termo»: «não se trata da relação do homem com a linguagem enquanto fenómeno social», mas enquanto estrutura articulada e autónoma. Com efeito, o significante, puro elemento diferencial, possui a propriedade de se compor segundo as leis de uma ordem fechada, ou seja, forma um sistema. Assim se explica a necessidade de um substrato topológico, do qual, aliás, a «cadeia significante» é a aproximação terminológica frequentemente utilizada por Lacan. Trata‑se de um conjunto diacrítico de elementos discretos: a ordem estrutural da linguagem, ou melhor, falando a língua do autor, o «discurso do Outro», onde «o sujeito, por uma anterioridade lógica a todo o despertar do significado, encontra o seu lugar significante». E se o Outro é verdadeiramente o lugar do significante, cuja primazia sobre o significado abala por completo os alicerces de toda a filosofia da consciência («egocêntrica» por natureza), faz‑se então mister conceber o desejo como um efeito da relação do homem com a linguagem. Admitindo a validade de tal concepção, há que admitir também as suas consequências lógicas: o desejo é inconsciente e traduz uma falta de ser constitutiva do ser humano enquanto «parlêtre» («falente»[ii]).
Mas vamos por partes. Voltando ao ponto de partida do texto em que assenta o presente ensaio, devemos insistir na presença do significante e nos seus efeitos. Encontramo‑los primeiramente numa transformação das necessidades do ser humano advinda do uso da fala, ou seja, do facto de ele dirigir necessariamente o seu pedido de ajuda a outrem. No entanto, o que o sujeito realmente procura através da fala não é a mera satisfação das necessidades, mas a resposta do Outro. Estando o sujeito, dado o seu estado de desamparo inicial, sujeito ao Outro, i.e., à necessidade de haver pedido para que haja satisfação das suas necessidades, estas são‑lhe necessariamente devolvidas de um modo alienado. Porém, contrariamente à perspectiva psicologizante que acarreta a redução objectal dessa relação com o Outro, lugar da Mãe, enquadrando‑a nos moldes de um «companheirismo maternal que satura qualquer desejo primitivo», isso — esse desvio das necessidades provocado pela fala — não é o efeito da dependência efectiva do sujeito, pois resulta da «enformação significante» enquanto tal. Isto aponta, sem dúvida, para a substituição da necessidade pelo significante, presença feita de ausência. Daí que, fazendo de novo referência a uma citação acima assinalada, seja possível considerar o pedido como algo mais do que um simples apelo à satisfação das necessidades: «Ele é pedido de uma presença ou de uma ausência. O que a relação primordial com a mãe manifesta, por estar grávida desse Outro a situar aquém das necessidades que ele pode satisfazer.» Se bem que o Outro ao qual se dirige o pedido, que é sempre exigência incondicional de uma resposta (i.e.: pedido de amor), possa — por força da «calcadura de elefante»[iii] do seu capricho — introduzir no sujeito o «fantasma» de uma omnipotência posta ao serviço de uma satisfação universal das necessidades, certo é ser tal uma impossibilidade, tanto mais que através do pedido algo nelas se aliena irreversivelmente, ou melhor, se perde, «mas que aparece num descendente, que é o que se apresenta ao homem como desejo», cujo esboço excêntrico («cette manque d’infini qu’y relèvent les théologiens») se desenha assim nesse intervalo entre o apetite da satisfação e o pedido de amor: «diferença que resulta da subtracção do primeiro ao segundo, o próprio fenómeno da sua clivagem».
Eurico Carvalho
In «O Tecto»,
Ano XVI, n.º 47,
Dezembro/2004, pp. 9/10.
[i] Todas as citações foram retiradas das seguintes obras de Lacan: Escritos (1966) e Seminário I: Os Escritos Técnicos de Freud (1975).
[ii] Este neologismo é a tradução possível do termo lacaniano: tem a vantagem de fazer contraste com falante.
[iii] Não sendo equivalente a uma ama‑seca, a «boa mãe» é quem consegue furtar‑se a esse «capricho elefantino», que abafa o desejo do pequeno homem sob o manto pesado da necessidade, para lhe dar o seu melhor, i.e., aquilo que ela não tem. Dar o que não se tem, eis a definição lacaniana de amor, da qual se infere ser mais importante para o sujeito a resposta do Outro do que a mera satisfação das necessidades.
Etiquetas: CENA DIDÁCTICA, ENSAIO
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