quinta-feira, 22 de junho de 2006

O DESEJO, O PEDIDO E A NECESSIDADE [III]

A clivagem [Spaltung] significa a própria divisão original do «parlêtre» [Ichspaltung] ocasionada pelo significante, cuja concepção lacaniana está nos antípodas de uma visão linguística tradicional, que ainda admite uma correspondência entre aquele e o significado. Na verdade, para esta, o significante representa um significado para um sujeito; paradoxalmente, para Lacan, «representa um sujeito para um outro significante»[i]. Em última instância, todo o significante (e não somente o nome próprio) tem a função de substituir o sujeito, que se verifica não estar afinal no centro de si mesmo, porque só pode apreender‑se do lugar do Outro, cujo discurso é o Inconsciente.

Sendo a Spaltung, de facto, Ichspaltung, conclui‑se que a essência do homem é o desejo: o seu ser consiste numa falta de ser. Vejamos porquê: admitida a sobredeterminação do ser humano pelo significante, o qual forma um sistema (completo, por definição), há que admitir também esta consequência fulcral: o sujeito só pode aparecer em tal estrutura enquanto falta, i.e., desaparecendo, experimentando o que Lacan chama (servindo‑se de um termo forjado por E. Jones) de «aphanisis». Não podendo aspirar a ser inteiro, o «parlêtre» surge no ser como «manque‑à‑être», quando acede à linguagem, à qual a cultura possivelmente se reduz, e por esse intermédio se humaniza o desejo.

Posta assim em relevo a falsa pressuposição da «personalidade total e autónoma» em que se baseia a psicoterapia moderna, quebra‑se igualmente a transparência clássica do sujeito, agora sujeito ao significante que o eclipsa. Desses efeitos de «fading» nos dá conta a ignorância do seu desejo em que se encontra o sujeito freudiano, mas que não diz propriamente respeito àquilo que ele pede. O que o homem não sabe, na verdade, é de onde lhe vem o desejo, e não para onde vai o seu pedido. Eis por que razão o desejo humano se descobre como desejo do Outro, pois é como Outro que o homem deseja — «o que dá o verdadeiro alcance da paixão humana». Atingi‑lo é compreendê‑la no seu devido lugar, onde o reconhecimento do desejo se liga ao desejo de reconhecimento. Como função de reconhecimento, a fala dá‑nos o alcance dessa paixão: paixão do significante pelo qual não apenas o homem fala, mas isso fala («ça parle...») nele e por ele. É isso o desejo, e por isso ele existe na medida em que há inconsciente, i.e., linguagem cujos efeitos escapam ao sujeito que «diz sempre mais do que aquilo que quer dizer, sempre mais do que aquilo que sabe dizer».

«E os enigmas que o desejo propõe a toda a ‘filosofia natural’, o seu frenesi a mimar o abismo do infinito, a colusão íntima em que ele envolve o prazer de saber e o de dominar pela fruição, não são devidos a nenhum outro desregramento do instinto senão a terem sido encarrilados na metonímia — a tenderem eternamente para o desejo de outra coisa.» Donde o seu carácter errático, paradoxal. Indestrutível, insusceptível de satisfação e irredutível à necessidade, o desejo é o que move o sujeito em direcção ao Outro (em busca de uma igualdade impossível). Movimento sem fim, porque está encarrilado nos «desfiladeiros do significante» — e em cuja cadeia «o sentido insiste, embora nenhum dos seus elementos consista na significação de que é capaz no próprio momento». Quer isto dizer que a relação entre significado e significante não pode ser compreendida nos moldes de uma correspondência biunívoca. Impõe‑se portanto a noção de um deslize incessante do primeiro sob o segundo. Mas esse deslize seria um percurso louco se não houvesse entretanto entre os dois alguns pontos de ancoragem (vd. teoria dos «points de capiton»). Daí a necessidade (clinicamente comprovada[ii]) de um significante que detenha o deslize indefinido da significação: «significante destinado a designar no seu conjunto os efeitos de significado, na qualidade de significante que os condiciona pela sua presença de significante».

Que o falo seja esse significante, eis o que justifica a natureza sexual da divisão do sujeito resultante da sua entrada na ordem simbólica pela mão do Pai, metáfora da Lei. Em tal fenda [Spaltung] está a origem da barra (da resistência à significação) do algoritmo saussuriano subvertido por Lacan, porque o eixo dos significantes não coincide com o dos significados. A esta falta de coincidência entre eixos que só se confundem no plano imaginário (e cuja separação, simbolizada pela barra que introduz a censura, significa que o sujeito, quando fala de si, não é idêntico àquele de quem fala) corresponde a impossibilidade de uma igualdade sexual, cuja assunção subjectiva implica a castração, da qual o falo, erecção da falta de ser, constitui o símbolo: ou o sujeito não o é, ou não o tem. Não sendo ela senão uma operação simbólica, por seu intermédio surge o falo como significante por excelência dessa falta que lhe vem do Outro, cujo desejo é assim sexual[iii]. Aliás, «é esse desejo do Outro como tal que se impõe ao sujeito reconhecer, i.e., o outro enquanto ele próprio está dividido pela Spaltung significante». Portanto, o falo é o significante do desejo do Outro.

Quando se dá a substituição do desejo da Mãe pelo Nome‑do‑Pai (e a isto se reduz a castração, para Lacan), consuma‑se a proibição do gozo incestuoso: quem é sujeito da fala não pode ser o falo omnipotente (objecto imaginário). A castração quer então dizer que «é preciso que o gozo seja recusado para que possa ser atingido na escala inversa da Lei do desejo». A essa Lei, como sabemos, não corresponde nenhum Legislador, que dela tão‑somente conhecemos o representante original: o Pai. «O que nós formulamos — declara Lacan — ao dizer que não há metalinguagem que possa ser falada; mais aforisticamente: não há Outro do Outro», mas apenas outro do outro do outro. Por conseguinte, Deus não existe, ou seja, psicanaliticamente falando, o verdadeiro Pai é o Pai morto.

III

Dada a economia deste artigo, a sua conclusão não tem senão a pretensão de constituir um ponto de partida para uma possível crítica da visão lacaniana do desejo. Antes disso, porém, recapitulemos o essencial do pensamento do notável destruidor da Vulgata psicanalítica.

Se há «doenças que falam», e quem o diz é o próprio Freud, então o sintoma, para Lacan, merece o título de «significante de um significado recalcado». Ao instaurar a supremacia daquele sobre este, o autor dá ao corpo o lugar central que é o seu de direito, já que ele se situa exactamente no cruzamento da linguagem com o inconsciente. E tudo isto veio na sequência da descoberta freudiana, a qual teve como impulso o estudo da histeria, ou seja, a inscrição de uma letra no corpo. A ela deve o significante a sua ancoragem no corpo, porque o localiza e materializa.

É somente na condição de animal falante que o homem possui um inconsciente. E só por isso deseja, pois o desejo — enquanto desejo do Outro — é o que assinala a fundação da humanidade pela linguagem. Ora bem, a «fala introduz o vazio do ser na textura do real»: falar é dizer a ausência do ser, porquanto a linguagem substitui a coisa por um símbolo. Nessa medida, conclui Lacan, eterniza o desejo, não sendo assim possível satisfazê‑lo. Em conformidade com tal perspectiva, tanto a linguagem como o desejo actualizam a morte[iv].

Para o psicanalista francês, pensador dialéctico, apenas a falta que nos constitui como seres mortais justifica a existência da fala, cuja função pura consiste em «nos assegurar que nós somos e nada mais». Além disso, é o falo o significante central dessa perda de ser pela qual emerge o desejo. A nosso ver, esta marca fálica do desejo assinala os limites da desbiologização lacaniana do discurso psicanalítico[v].

No fim de contas, Lacan não fala do desejo, fala do poder. Nada dizendo do poder do desejo (como dizem Espinosa e Nietzsche, por exemplo), todo o seu discurso gira em torno de um «significante despótico» (Deleuze): o grande Phallus, insígnia da Lei. Mas é preciso substituir essa dialéctica do desejo e da sua impossível satisfação por um pensamento verdadeiramente trágico, i.e., capaz de indicar o futuro e não o passado, a imaginação e não o imaginário, o excesso e não a falta. Em suma: os «achados» do sujeito — e não os objectos «perdidos» para sempre. Seria então necessário convocar agora Deleuze, para quem o desejo é produção revolucionária e não relação com a Lei. Contudo, não é este o melhor lugar para tal convocatória, e é tempo já, pois, de trocar a escrita (e os Escritos...) por um convite à leitura (do Anti‑Édipo, claro!).

Eurico Carvalho

In «O Tecto»,

Ano XVII, n.º 48,

Fevereiro/2005, pág.11.



[i] Exceptuando qualquer indicação em contrário, todas as citações foram retiradas das seguintes obras de Lacan: Escritos (1966) e Seminário I: Os Escritos Técnicos de Freud (1975).

[ii] Por exemplo: para Lacan, a psicose resultaria de uma primordial rejeição desse significante, assim expulso do universo simbólico do sujeito.

[iii] Contra a leitura «culturalista» da psicanálise que minimiza o papel da sexualidade na vida psíquica, Lacan realça a sua articulação com a linguagem.

[iv] Não por acaso, o autor considera não só genial a hipótese freudiana relativa ao «instinto de morte», mas também afirma: ignorá‑la é ignorar a psicanálise.

[v] Com certeza, o falo não é o pénis. Tem um estatuto «algorítmico». Certamente, a castração é simbólica. Mas se o falo não se confunde com o membro viril, por que razão se mantém tal nomenclatura? Em todo o caso, a dimensão falocêntrica do discurso lacaniano salta à vista do mais desatento leitor.

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