INTRODUÇÃO À LEITURA DE QUINZE DIÁLOGOS MINIMALISTAS
Modo de Usar
1. Embora surjam com a aparência de figuras abstractas, A e B devem ser compreendidos como verdadeiras personagens; não há que tomá‑las, pois, como posições conceptuais, i.e., redutíveis, por exemplo, de acordo com a cartilha hegeliana, à tese e antítese, respectivamente.
2. Sob o pano de fundo da observação anterior, não podemos perspectivar o autor textual, fictício, como sendo o putativo lugar da síntese bem‑soante.
3. Ironicamente investido de autoridade, por força da ressonância semântica do seu nome próprio, o autor desempenha uma função essencial: operar uma transformação da leitura inicial, perturbando‑a, com a consequente elevação do seu nível de complexidade.
4. O ponto de vista autoral não se confunde com o de A nem com o de B; se isso acontecer, será claro sinal do fracasso do diálogo, na sua qualidade de objecto dialéctico (no sentido kantiano do termo).
5. A distinção entre personagens e autor adquire aqui um valor operatório: marca a passagem da vida para o pensamento — e a (im)possibilidade de captura daquela, singularidade concreta, por este último, pura abstracção.
6. Não se veja no sujeito nominal dos diálogos o alter ego do relator. Dada a diferença ontológica que os separa, aliás, irreversível, não podemos legitimar a redução retórica da autoria à dimensão linear de um mero exercício de pseudonímia.
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DIÁLOGO 1
A — Quem és tu?
B — Não sabes? Vê bem!
A — Incrível! Estás vivo? Como? Eu matei‑te!
B — Sim, mas não morri! Enquanto existires serei imortal…
Autor: O Moralista
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DIÁLOGO 2
A — Se me amasses tanto, meu amor, como te amo a ti, não dirias que não!
B — E eu? Não poderei dizer o mesmo?!
Autor: O Céptico
DIÁLOGO 3
A — Permitir‑me‑á, meu caro senhor, o ousio de lhe dirigir uma pergunta?
B — Força!
A — É isso mesmo! Que significa?
B — O quê?
Autor: O Lente
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DIÁLOGO 4
A — Querida, estás a dormir?
B — Sim, meu amor…
Autor: O Cínico
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DIÁLOGO 5
A — Dê‑me lume, por favor!
B — Já lhe disse que é proibido fumar…
A — Mas posso vê‑lo melhor — ou não?
Autor: O Comediógrafo
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DIÁLOGO 6
A — Uma esmolinha, por amor de Deus!
B — Por amor de quem?
A — Deus, mãe dos céus!!!
B — Deus é mulher?...
Autor: O Metafísico
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DIÁLOGO 7
A — Já não acredito em ninguém!
B — Nem mesmo em ti?
Autor: O Inquisidor
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DIÁLOGO 8
A — Com solenidade o digo: — A electricidade matou os fantasmas.
B — Mas será possível matar o que nunca existiu?
A — Enganas‑te! Queres tu coisa mais real que o próprio mito?
Autor: O Paleólogo
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DIÁLOGO 9
A — Queres fazer amor?
B — Com quem?
Autor: O Analista
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DIÁLOGO 10
A — Ter consciência da morte é o maior dos males.
B — Discordo absolutamente!
A — Qual é, pois?
B — A ânsia assassina de ser imortal.
Autor: O Tautólogo
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DIÁLOGO 11
A — Será biodegradável o entusiasmo pelo saber?
B — Da sabedoria, claro, não são sinais os cabelos brancos. É isso?
A — Que leitura simplista! Atenta nisto apenas: a máquina aniquilou o exercício heróico do possível.
B — Agora, sim, sinto-me iludido pelas tuas palavras, qual campónio atarantado pelo ruído da grande cidade!
Autor: O Ecólogo
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DIÁLOGO 12
A — Não acreditas que os padres acreditem em Deus?
B — Não sejas ingénuo!
A — Haveriam de crer em que?
B — Em tudo o que a boca deles cala o mais que pode.
Autor: O Teófilo
DIÁLOGO 13
A — Será possível que haja ainda gente capaz de afirmar a existência do Paraíso?
B — Cada vez mais! O Inferno alastra sobre a Terra.
Autor: O Teólogo
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DIÁLOGO 14
A — Não me digas que gostaste deste livro…
B — Muitíssimo!
A — Ora essa! Porquê?
B — Deu‑me imensa vontade de o ler!
Autor: O Iconoclasta
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DIÁLOGO 15
A — Quem bate à porta?
B — A Morte!
A — Tarde de mais! Já fechámos a loja.
Autor: O Político
Relator: Eurico de Carvalho
In «O Tecto»,
Ano XVIII, n.º 56,
Julho/2007, pág.7.
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