sábado, 23 de outubro de 2021

EM PROL DA LÍNGUA PORTUGUESA (A PROPÓSITO DE UMA CARTA DE 6 DE SETEMBRO DE 2021)

 


Aproveito a oportunidade para apresentar a versão integral da carta acima citada. Ei‑la:

    Ex.mo Sr.

    Provedor do Leitor,

    Dr. José Manuel Barata-Feyo:

    

    Enquanto fiel leitor do Público (desde a sua fundação, aliás!), gostaria de saber quais são os critérios de contratação dos cronistas que nele têm tribuna. Entre eles, por certo, já não se encontrarão o bom domínio da língua portuguesa. É lamentável, de facto, a manifesta degradação da qualidade linguística de um jornal que pretende ser de referência. Para que a presente denúncia não se cinja, no entanto, a meras considerações edificantes, vejamos, desde já, alguns exemplos (correspondentes aos títulos de duas crónicas, cuja publicação remonta ao mês de Agosto):

        a) «Desculpem lá a maçada»;

        b) «Em nome da saúde mental, pais precisam de descontrair».

    No primeiro caso, Carmen Garcia desconhece a diferença entre o objecto directo e o indirecto do verbo «desculpar»; no segundo, Vera Ramalho ignora que estamos perante um caso em que o verbo «descontrair» apela para a respectiva pronominalização reflexa. Assim sendo, e em bom Português, teríamos as seguintes correcções:

        a) «Desculpem‑me lá da maçada»;

        b) «Em nome da saúde mental, pais precisam de se descontrair».

    Sabemos bem que as chagas não se circunscrevem à pena dos cronistas do Público, atingindo muitos jornalistas (designadamente, os estagiários). A respeito destes últimos, de resto, impõe‑se a pergunta: Como é possível que escreva tão mal «a geração mais qualificada de sempre»? Pobre geração! Por ser filha de uma Escola Pública que abandonou o Latim e os Clássicos, tornou-se presa deveras fácil da colonização selvagem a que o Português tem sido sujeito por parte do Inglês. A isto acresce o fascínio pacóvio e provinciano pelas redes sociais e tecnologias que se lhes associam, com a consequente e virosa propagação de elementares erros de quem desconhece, em especial, a regência preposicional dos verbos («precisar» e «gostar» são vítimas habituais…) e os casos em que se torna obrigatória a sua pronominalização reflexa. Aí temos, porfiem, o corolário paroquial deste cenário devastador: o «portinglês», no qual, certamente, nunca a Vénus de Camões teria reconhecido o belo idioma que suscitou a sua paixão pelos nautas lusitanos.

    Do ponto de vista lexical, realmente, o «portinglês» enxameia as páginas do Público, sendo recorrentes os vocábulos que ferem o génio da língua: «taliban», «jihadista», «cartoonista», «Qatar», etc. Num outro plano (mais grave, enfim…), o sintáctico, são inúmeras as construções frásicas que «macaqueiam» a sintaxe do Inglês, de que é exemplo horripilante «é suposto».

    Relativamente às regências preposicionais, o cenário é catastrófico. Limitar‑me‑ei — aqui — a chamar a atenção para uma pergunta do «Questionário de Proust» (secção diária das edições do mês transacto): «O que menos gosta na sua aparência física?» Em bom Português, poderíamos ter, por exemplo, a correcção que se segue: «Na sua aparência física, de que menos gosta?»

    No preciso dia em que escrevo esta carta, a edição do Público apresenta, na sua página 3, o seguinte título: «Pandemia fez quadriplicar [sic] lucros de alguns laboratórios». Numa edição antiga, aquando da entrevista a um Secretário de Estado, eis que surge esta questão: «Como é que está [sic] moral no Governo?» É de bradar aos céus!

    Seria bom que o zelo com que o Público denuncia (e muito bem!) as nefastas consequências do novo acordo ortográfico também se transferisse para as restantes dimensões da língua, promovendo, pois, uma revisão criteriosa da sintaxe e da semântica dos seus textos. Será pedir de mais?

    

    Agradecendo, desde já, toda a atenção concedida à presente, subscrevo‑me com os melhores cumprimentos.


Eurico de Carvalho

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