quarta-feira, 1 de março de 2006

CENA DIDÁCTICA [I]

Educação Sexual: Entre o Medo da Doença e o Esquecimento do Prazer

Cumprir‑se‑á em três tempos o desenvolvimento da nossa reflexão: há‑de corresponder ao primeiro, pela via de uma aproximação à essência do fenómeno educativo, a legitimação da educação sexual no campo escolar; ao segundo, uma abordagem muito breve e crítica do quadro legal que regulamenta a matéria em questão; por último, uma tentativa de ultrapassagem do plano em que se dá como «evidente» a necessidade de um enquadramento «sanitário» da sexualidade.
I
Que deve entender‑se por educação? Consultemos a etimologia: verifica‑se a presença de «ducere», que em latim significa «conduzir». Assim sendo, a educação não é senão a condução do homem. Mas o acto de conduzir implica saber «onde se está» e «para onde se vai». Por outras palavras: a educação pressupõe um princípio fundamental e uma finalidade última. A sua determinação exige que se responda à sequente questão:
— Por que razão precisa o homem de ser conduzido?
Isso resulta apenas do facto de ele não surgir enquanto tal, ou seja, enquanto homem. Com efeito, o homem só se faz homem no meio de outros homens. Sem a condução de outrem, portanto, a qual se cumpre em nome de um certo ideal, sujeito às exigências do tempo, o homem nunca poderia vir a ser o que realmente é: o único ser cuja natureza está na sua história. É própria do homem a falta original de algo que lhe seja naturalmente próprio. A sua indeterminação nativa — a sua miséria à nascença — é, pois, o princípio fundamental que justifica a existência da educação, cuja finalidade última salta à vista: tornar o homem humano. Não o sendo imediatamente, refém do seu atraso inicial relativamente à humanidade, o homem tem na educação o «medium» da sua humanização, que o orienta para o destino que é o seu: realizar‑se a si próprio.
«Às teorias tradicionais sobre educação, que admitiam a finalidade desta na ética [fundando-a assim num desconhecimento idealista da natureza humana], surge hoje, com a sua radical refutação, a tendência que coloca como finalidade principal do processo educativo o próprio desenvolvimento psicológico do indivíduo [e cuja dimensão psicossexual, desde Freud, pelo menos, não pode ser ignorada].[i]» Além do que, dada a afirmação contemporânea do corpo enquanto lugar de emergência do espírito[ii], já não é possível conceber um ensino que em nome da razão despreze as emoções, recalcando, claro está, sob o influxo de um neoplatonismo destilado há séculos pela tradição judaico‑cristã, a condição sexuada do sujeito de aprendizagem. Pelo contrário, as descobertas mais recentes da neurobiologia sugerem que a «emoção bem dirigida parece ser o sistema de apoio sem o qual o edifício da razão não pode funcionar eficazmente»[iii]. Por outro lado, se «os limites da escolha, na escola, do que ao homem deve ser ensinado, são impostos pela natureza do próprio homem»[iv], então, atendendo à sua plasticidade, de acordo com a qual, aliás, segundo a psicanálise, a corporeidade que lhe é própria, contrariamente à do animal, se configura de um modo pulsional e não instintivo, tem todo o cabimento que tal agência de socialização concretize o direito à educação sexual. Com efeito, à escola, na sua qualidade de «oficina da personalidade», cabe o cumprimento de «duas funções primordiais: conhecer o aluno e orientá‑lo em função desse conhecimento»[v]. Mas se não se quer lacunar e intelectualista, reduzindo destarte a missão escolar à mera transmissão de um saber abstracto, i. e., que se isola da vida, essa orientação não pode deixar de favorecer a autodescoberta e a destruição de todos os tabus susceptíveis de inibir o desenvolvimento integral do aluno.
II
Não por acaso, o primeiro documento legal sobre a educação sexual nas escolas remonta à década de Oitenta, ou seja, quando se revela a epidemia da sida. Qual «peste» finissecular, por ter sido associada, de início, a «grupos de risco»[vi] (homossexuais e toxicodependentes), ainda hoje a doença, para o imaginário popular, ilustra algo mais que uma infecção viral contingente: para o vulgo, sem dúvida, o quadro clínico está conotado com um «estilo de vida» colorido pela promiscuidade. Certo é, no entanto, o facto de a sexualidade ser outra após a sida: «O conceito de uma prática sexual segura passou a envenenar o relacionamento sexual entre as pessoas.[vii]» E é neste contexto reactivo que se explica a publicação da Lei n.º 3/84 de 24 de Março. Aí, no segundo ponto do seu artigo primeiro, lê‑se o seguinte: «Incumbe ao Estado, para protecção da família, promover, pelos meios necessários, a divulgação dos métodos de planeamento familiar e organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes.» Não é difícil descortinar neste enunciado três pressupostos fundamentais. Ei‑los:
1) a família é a base da sociedade (daí que esta, pela via da sua organização política, sinta a necessidade de protegê‑la);
2) a estrutura familiar resulta da união de pessoas de sexo oposto (donde a necessidade de métodos de planeamento, em especial, da gravidez);
3) a relação sexual enquadra‑se e atinge a sua justificação na esfera da reprodução (daí a necessidade de promover o exercício consciente da função parental).
Pela conjugação destes elementos compõe‑se um perfil axiológico que não dista muito da moral sexual tradicional. Neste caso, aliás, bem poderia o legislador fazer suas as palavras conservadoras de Hegel: «A relação sexual obtém na família a sua significação e determinação espiritual e ética.[viii]» De um modo sintomático, todo o texto legal articula o direito à educação sexual com o dever de proteger a família (cf., designadamente, art.º 2.º, ponto 1).
Quinze anos depois, pela Lei n.º 120/99 de 11 de Agosto, instrumentaliza‑se a educação sexual, pondo‑a ao serviço de uma política sanitária[ix]. É o que podemos tão‑somente concluir pela leitura deste passo fundamental: «Nos estabelecimentos de ensino básico e secundário será implementado um programa para a promoção da saúde e da sexualidade humana, no qual será proporcionada informação sobre a sexualidade humana, o aparelho reprodutivo e a fisiologia da reprodução, sida e outras doenças sexualmente transmissíveis, os métodos contraceptivos e o planeamento da família, as relações interpessoais, a partilha de responsabilidade e a igualdade entre os géneros» (cf. capítulo II, art.º 2.º, ponto 1). Dada a importância que se atribui à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, o controlo do comportamento sexual já não passa pela noção de pecado, cuja eficácia repressiva se perdeu com o processo de secularização, cabendo agora à sida, pelo seu carácter mortal (daí a sua nomeação...), uma função normativa: regula a circulação dos corpos, mantendo‑os «na linha», tanto mais que tê‑la — para muitos — constitui sinal de castigo, punindo um desvio sexual, e não apenas de sofrimento. Em suma: o articulado rasura a ligação entre sexualidade e prazer, tomando o corpo, pura e simplesmente, como objecto de reprodução.
III
Como evitar a redução da educação sexual a um adestramento dos alunos num conjunto de regras de prevenção da gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis? Reconhecendo o lugar do prazer, pondo consequentemente de lado moralismos serôdios que recusam a separação entre sexo e reprodução. Mas como fazê‑lo sem cair num pretenso «hedonismo» de vanguarda? Admitindo porventura, contra a psicologia clássica, que o prazer não se reduz a uma afecção do corpo (contraposta à dor), constituindo também uma qualidade muito particular da consciência, ainda que não possamos confundi‑la com a felicidade. Além disso, faz‑se mister reconhecer a impossibilidade de uma normalização homeostática do impulso sexual, na medida em que este ultrapassa o plano biológico do instinto, não se reduzindo o prazer polimorfo que dele resulta à mera satisfação de uma necessidade fisiológica. Com a sexualidade, de facto, assistimos a um movimento centrífugo e expansivo, implicando o contacto com outrem. Donde o risco inerente à relação sexual. Mas o prazer que dela se retira não é simplesmente sensível: assaz livre[x], apela para a imaginação, sendo a sensação que lhe corresponde o alvo de uma intensificação cujo princípio está na representação. É por isso que a educação sexual não pode deixar de ser uma crítica das representações convencionais que se associaram historicamente à sexualidade, porquanto se transformaram em obstáculos que impedem a vivência inteligente do poder do corpo. Trata‑se de uma crítica histórico‑filosófica, da qual Nietzsche dá‑nos uma amostra exemplar: «Por detrás dos teus pensamentos e dos teus sentimentos, meu irmão, há um senhor mais poderoso, um sábio desconhecido — chama‑se Si[xi]. Habita no teu corpo, é o teu corpo.[xii]»
Mudou muito a imagem do homem: durante o século transacto, por exemplo, a «revolução fenomenológica» trouxe consigo um corte antropológico, rompendo de vez com o platonismo da tradição intelectual do Ocidente. Mas se o ser humano não é uma alma encarnada, devendo nós concebê‑lo como um corpo animado, torna‑se incontornável a pergunta de Espinosa: que pode um corpo? Na verdade, ainda não o sabemos de todo, embora a neurobiologia, dando suporte científico à viragem antropológica de que foram responsáveis a psicanálise e a fenomenologia, contribua paulatinamente para a construção de uma resposta que significa a falência dos dualismos metafísicos[xiii]. É neste contexto filosófico que há que enquadrar a educação sexual enquanto programa que combata as «paixões tristes», promovendo deste modo a potência de agir do corpo[xiv]. Eis o Leitmotiv (de raiz espinosista) que nos deve servir de guia: pensar o corpo como sujeito de produção — e não como objecto de reprodução.

EURICO CARVALHO

Texto publicado em Março de 2004
no jornal «O Tecto» de Vila do Conde
(Ano XVI: N.º 44).
Cf. páginas 1/3.

[i] Santos, Delfim, Fundamentação Existencial da Pedagogia (1946) in Obras Completas, II vol., 2.ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 487.
[ii] «Uma mente, aquilo que define uma pessoa, exige um corpo, e um corpo, um corpo humano, claro, gera naturalmente uma só mente. A mente é de tal forma modelada pelo corpo e destinada a servi‑lo que apenas uma mente pode nele surgir. Sem corpo, nada de mente» (Damásio, António, O Sentimento de Si — O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência [1999], 6.ª edição, Lisboa, Publicações Europa‑América, 2000, p. 172). Atentemos na passagem por nós sublinhada: qualquer discípulo de Platão ficaria escandalizado com a sua subscrição!
[iii] Id.: 62.
[iv] Santos, Delfim, op. cit.: ibidem.
[v] Santos, Delfim, A Missão da Escola (1943) in op. cit.: 424.
[vi] Sabemos hoje que se trata de uma expressão infeliz e discriminativa. Como é sabido, em 1981, GRID (gay‑related imunodeficiency disease) consignou‑se, de facto, como o primeiro acrónimo da doença, que a imprensa popularizou atribuindo‑lhe um termo sem rodeios: «cancro gay». Mais lamentável, porém, diga‑se de passagem, é o uso — em 1987! — da mesma expressão por parte de alguém cuja formação o deveria ter posto a salvo de tal enormidade, contribuindo assim para a manutenção de um estigma que já tinha sido denunciado há anos! («No ano de 1983, um grupo de cientistas americanos, europeus e zairenses, após estudarem uma série de doentes em África, não têm a menor dúvida de que estão a assistir ao eclodir e disseminar da epidemia através de um modo de transmissão heterossexual» [Gomes, F. Allen, «O Melhor e o Pior do Ser Humano através da Sida» in Notícias do Milénio — Suplemento da edição de 8 de Julho de 1999 do Jornal de Notícias, p. 329]). Vejamos então o passo que temos em mente: «Aliás, o problema da imunodeficiência adquirida ganhou particular relevo na psiquiatria, porque, para além dessa possível relação com as psicoses sintomáticas, se verifica que os maiores grupos de risco para a doença são os indivíduos homossexuais masculinos e os toxicómanos, sobretudo os toxicodependentes da heroína injectável» (Fonseca, A. F. da, Psiquiatria e Psicopatologia, II vol., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 189). Por aqui também se explica com certeza a persistência de uma certa «mitologia» que envolve ainda a sida.
[vii] Gomes, F. A., op. cit.: 331.
[viii] Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome (1817), III vol., Lisboa, Edições 70, 1992, p. 23 (§ 397).
[ix] Não é indiferente a tudo isto, claro, a evolução nacional da epidemia da sida, de cujo combate, por comparação com o que se fez no resto do continente, podemos questionar, sem dúvida, a eficácia.
[x] Sobre a diferença entre prazer sensível e prazer livre, cf. Schiller, Sobre o Motivo do Prazer com Assuntos Trágicos (1792) in Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico, Lisboa, Imprensa Nacional‑Casa da Moeda, 1997, p. 29.
[xi] O próprio António Damásio reconhece em Nietzsche um precursor: «Ao procurar precedentes para a ideia de que o corpo é a base para o si, encontrei‑a em Kant, Nietzsche, Freud e Merleau‑Ponty, embora não do mesmo modo em que eu articulo a ideia através da organização tripartida do proto‑si, si nuclear e si autobiográfico, e não com a mesma ênfase sobre a estabilidade homeodinâmica» (op. cit.: 393‑4). Com efeito, a noção de Si de Damásio é mais complexa que a de Nietzsche: «Ao contrário do si nuclear, que é um protagonista inerente do relato primordial, e contrariamente ao proto‑si, que é uma representação actual do estado do organismo, o si autobiográfico baseia‑se num ‘conceito’, no verdadeiro sentido cognitivo e neurobiológico do termo» (id.: 205).
[xii] Nietzsche, Assim Falava Zaratustra (1883‑85) in Oeuvres, II vol., Robert Laffont, Paris, 1993, p. 308.
[xiii] Cf. Damásio, António, O Erro de Descartes — Emoção, Razão e Cérebro Humano (1994), 3.ª edição, Lisboa, Publicações Europa‑América, 1995, pp. 253‑7.
[xiv] «A alegria é uma afecção pela qual se aumenta ou favorece a potência de agir do Corpo; a tristeza, pelo contrário, é uma afecção pela qual se diminui ou entrava a potência de agir do Corpo; e, por conseguinte, a alegria é directamente boa, etc.» (Espinosa, Ética Demonstrada à Maneira dos Geómetras [Parte IV: Da Servidão Humana ou das Forças das Afecções], Livro III, Coimbra, Atlântida, 1965, p. 54).

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