TODOS OS TEUS GESTOS

Todos os teus gestos são aves.

És andorinha no abaixares‑te, condor no olhares‑me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente.

Bernardo Soares

Todos os teus gestos têm a ternura rude das igrejas próprias!

Meus olhos grossos de mágoa soçobram em missais estrangeiros ao teu altar externo: externo à noite e ao tempo precoce da carícia…

Sorris ao rir, contrariando a ironia morta das tempestades de carácter…

E ris ao sorrir, gargalhando estrelas diurnas e sem lar, sereníssimas…

Todos os teus gestos têm uma pele lúcida com um branco‑rosa por cenário.

Minhas mãos amarfanham o papel lento de um filme mudo para adultos.

Permito o adultério dos dedos, estático, no tampo da mesa onde estamos, pobre de fazer… Pobre das palavras laváveis em desertos das tardes de dizer [-te]. A ti. E a ti trago a aleluia indeclinável em qualquer língua!

Todos os teus gestos têm como ofício difícil maneira de ler a luz.

E meus cabelos preparam o suborno da criada do destino. Destilo lugares de encontro contigo. E levo na algibeira um isqueiro de conversa!

Familiar sem fósforos rotos de sol, líquido de sílabas novas das velhas frases, e ainda doido a propósito dos tiques habituais, habituo‑me às vésperas velozes por te verem…

Todos os teus gestos têm alguma princesa tricotando água — ou eu não sei nada!

Nado então na ária terna e segura da escrita atrás de ti, braços meus…

Em demanda da duna (lá quando demoras as crinas cruas de caruma virgem!), procurando qualquer coisa donde o medo pudera ser arredado, lençol roído por ratos da tristeza… E, procurado, aqui era o futuro.

Todos os teus gestos têm diabos belos a arder de dia! E adoraria trazer uma metáfora de carne: inútil com tacto. Para comermos, próximos, a alegria do canibal de outrora, e morrermos depois… se possível! Esse poema das pedras da seara… Rias do caminho… das árvores à espera…

E amoras de metal iluminado…

(Anáforas furiosas, todas tu!)

Todos os teus gestos te têm a ti. E o mais é o menos.

Eurico de Carvalho

In JN, «Página da Juventude»,

26.VII.86.