domingo, 13 de janeiro de 2008

CENA DIDÁCTICA [XI]

O NOVO ESTATUTO DA CARREIRA DOCENTE

O novo Estatuto da Carreira Docente mereceria uma longa análise. Dada a limitação do espaço, não é este, de facto, o momento de a realizar. Seja como for, tendo como pano de fundo a minha condição de professor de Filosofia, terei a possibilidade, pelo menos, de realçar alguns «pontos negros» do Decreto‑lei n.º 15/2007 de 19 de Janeiro.

Antes de mais, devemos salientar o contra‑senso resultante da data inerente à sua entrada em vigor. O início do ano civil, claro está, não coincide com igual período do ano lectivo. Salta à vista a incongruência resultante de um mesmo ciclo laboral estar sujeito a regras de trabalho totalmente diferentes. Mas esse é o menor dos males. Importa, sim, focar a nossa atenção em quatro itens, três dos quais, aliás, foram completamente obnubilados pela poeira mediática criada em torno da revisão estatutária. Agora que ela assentou, podemos identificá‑los:

a) a alteração do horário lectivo do Ensino Secundário;

b) o sistema de classificação;

c) a tabela de equivalências prevista para o regime transitório de avaliação do desempenho;

d) a distinção (no interior de uma única carreira) de duas categorias, as de professor e professor titular.

Em relação à primeira alínea (cf. artigo 77.º), há que referir o aumento da carga lectiva a suportar pelos professores do Ensino Secundário. Com efeito, até 31 de Dezembro de 2006, os horários de diferentes níveis de escolaridade (em conformidade com o quadro legal então em vigor) diferenciavam‑se desta maneira: para os dois últimos ciclos do Ensino Básico, estava prevista uma carga lectiva de vinte e duas horas; e, por sua vez, para o Secundário, vinte. Terá sido essa diferenciação um mero capricho do anterior legislador? De modo algum! Na raiz dessa mesma diferença, claríssimo está, podemos adiantar, desde já, a superior exigência científica do Ensino Secundário. Consequentemente, reconheceu‑se a necessidade objectiva de se libertar mais tempo, neste nível, para o trabalho individual do docente, de cujas dimensões devemos destacar as seguintes: actualização científico‑pedagógica, preparação de aulas, criação de instrumentos de avaliação e correcção dos trabalhos dos alunos.

Quais as consequências desta alteração? Que sirva de exemplo, para o que se segue, o meu caso pessoal (exactamente idêntico ao de centenas de colegas de profissão!): quarenta anos de idade e dezassete anos de serviço completo, estando, pois, a iniciar o décimo oitavo ano de actividade docente. Se não se tivesse verificado a actual mudança legislativa, teria tido direito, neste ano lectivo, à primeira redução (de duas horas) da componente relativa à leccionação propriamente dita. Por outras palavras: passaria a ter um horário de dezoito horas lectivas. Eis uma duração semanal de trabalho que, de acordo com o artigo 79.º, só será a minha (pasme‑se!) daqui a quinze anos, quando atingir o quinquagésimo quinto aniversário. Terei então trinta e um anos de serviço docente! Esta contabilidade elementar é mais do que suficiente para mostrar como o presente Estatuto da Carreira Docente vai produzir uma profunda degradação do enquadramento laboral inerente ao exercício da docência, de cujo desgaste profissional ninguém ignora as consequências, tanto mais que vivemos numa época em que os professores, pelo facto de terem de lidar diariamente com uma crescente heterogeneidade sociocultural na sala de aula, acumulam um stress incomparável com a prática tradicional de outros tempos.

Segundo o artigo 46.º, o resultado final do processo de avaliação do desempenho docente é expresso através das seguintes menções qualitativas: Excelente — de 9 a 10 valores; Muito bom — de 8 a 8,9; Bom — de 6,5 a 7,9; Regular — de 5 a 6,4 ; e, por último, Insuficiente — de 1 a 4,9. Como é bom de ver, a terminologia, em si mesma, semanticamente falando, carece de pertinência, porque não possui unidade lógica. Não se vislumbra, por exemplo, à luz dos melhores dicionários da língua, uma razão intrínseca para a distinção entre os dois primeiros níveis, cujos itens, do ponto de vista do seu significado, são equivalentes. (Tal distinção, claro, pretende — pura e simplesmente — garantir a aplicabilidade do regime de quotas.) Além disso, a escala revela‑se como uma estrutura desequilibrada. E por vários motivos:

a) admite quatro níveis acima de cinco valores;

b) embora seja aritmeticamente positiva a classificação de Regular, ela é, para efeitos de progressão na carreira, claramente negativa, já que implica que o tempo de serviço correspondente a essa menção não seja contabilizado (cf. ponto 5 do artigo 48.º);

c) ainda que, qualitativa e quantitativamente falando, sejam distintas as classificações de Regular e Insuficiente, os seus efeitos imediatos são idênticos (cf. alínea anterior);

d) há, pois, uma contradição entre o significado das menções qualitativas e as suas consequências efectivas, o que explica o carácter confuso da escala de avaliação (apesar de serem quatro os níveis superiores a cinco valores, são apenas três as classificações positivas).

Indo a escala de um a dez valores, seria de esperar a existência de cinco itens classificativos, mas cuja distribuição seria bem diferente: dois níveis superiores (v.g.: Muito bom e Bom) e igual número de inferiores (Mau e Medíocre), havendo ainda lugar para um nível intermédio (v.g.: Suficiente). Por que razão o Ministério da Educação não quis adoptar a escala tradicional? Sabemos que a classificação de Regular equivale, de facto, à de Insuficiente. Ora, se enquadrássemos a mesma equivalência nos termos da escala normal, tornar‑se‑ia notória esta absurdeza: a classificação de Suficiente atribuída ao desempenho de um professor não seria suficiente para a sua progressão na carreira!

Eurico Carvalho

P.S.Apresentar‑se‑á no próximo número a segunda parte deste artigo.

In «O Tecto»,

Ano XVIII, n.º 57,

Julho/2007, pág. 2.

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