segunda-feira, 12 de setembro de 2011

ENTRE VALOR DE USO E VALOR DE TROCA: A PERVERSÃO DA ECONOMIA






Em pleno reino especulativo do capitalismo financeiro, é bom reler Aristóteles…



À obra de Aristóteles (que em quase tudo, aliás, se revelou um pioneiro do pensamento ocidental) podemos remontar, sem dúvida, seguindo aqui o reconhecimento do próprio Marx, a célebre distinção entre valor de uso e valor de troca. Ela aparece, de facto, neste excerto do Livro I da Política (1257ª):

[…] tudo o que possuímos tem um duplo uso, mas não no mesmo sentido: um dos usos é adequado ao objecto; o outro, não. Por exemplo, uma sandália tem dois modos de uso: como calçado e como objecto de troca. Ambos são modos de utilização da sandália; aquele que troca uma sandália por dinheiro ou alimento com alguém que dela necessita faz uso da sandália como sandália, mas não faz o uso próprio da coisa; é que esta não existe para ser trocada. O mesmo acontece com outros bens, porque a troca abrange tudo, e tem a sua origem no facto natural de os homens possuírem mais ou menos do que é suficiente.

Procedendo à análise textual, devemos salientar várias ideias: (i) todas as coisas admitem um duplo uso, (ii) há um uso adequado e inadequado das coisas, (iii) o valor de troca subordina‑se ao valor de uso, (iv) qualquer coisa pode ser objecto de troca e (v) tanto o uso como a troca são processos naturais.
Cada uma das cinco teses merece um comentário particular. Quanto à primeira, e tomando como referência do seu significado o exemplo aristotélico, havemos de convir que, no que toca à sandália, tanto podemos usá‑la enquanto tal, i.e., enquanto calçado, como trocá‑la por outra coisa qualquer. Neste caso, porém, segundo o Estagirita, não se faz um uso próprio da sandália, porquanto a troca, que lhe é exterior, não constitui realmente a sua «causa final». Pelo contrário, quando a calçamos, usamo‑la com propriedade, na medida em que lhe atribuímos, desta vez, a finalidade para a qual foi produzida. É este, em suma, o conteúdo da segunda proposição. Em relação à terceira, que decorre directamente da anterior, há que sublinhar a ideia de que a sandália, afinal, só se pode trocar por algo, quando, de algum modo, satisfaz a necessidade de alguém que a queira utilizar. Quer isto dizer que a trocabilidade das coisas assenta na sua utilidade, não podendo, pois, nenhuma delas ser objecto de troca sem ser valor de uso. Mas tal não implica, claro está, que um valor de uso se troque por esse mesmo valor. Seria estranho, com efeito, que o sapateiro, que produziu a sandália peripatética, a trocasse por outro exemplar de idêntica natureza. Para ele, enquanto produtor de calçado, este último tem somente o valor de uso de ser portador de valor de troca. Aliená‑lo‑á, por certo, por algo (v.g.: cereal) cujo valor de uso o satisfaça, o que nos mostra já (em conformidade com a penúltima tese) a razão de ser da universalidade da troca: a inexistência de indivíduos auto‑suficientes, sejam eles sapateiros ou agricultores. Com certeza que os primeiros, contrariamente aos segundos, hão‑de possuir mais sandálias do que é suficiente; quanto aos cereais, naturalmente, será inversa a situação. Justifica‑se, assim, pelas diferenças de produção, a troca entre os homens, tendo ela, no entanto, para Aristóteles, um limite natural: a satisfação das suas necessidades. Entre uso e troca, portanto, não há descontinuidade lógica, o que evidencia, desde logo, o sentido da derradeira asserção aristotélica: a naturalização do duplo plano de existência das coisas, ou seja, o consumo e o mercado, na medida em que estão um para o outro, na verdade, numa relação correspondente àquela que existe entre meio e fim.
Que o meio, a troca, se transforme em fim — infinito —, eis o paradoxo económico que a filosofia aristotélica, por força dos seus pressupostos naturalistas, não permite compreender, o que se percebe facilmente, por sua vez, quando não se ignora a diferença, sob o ponto de vista do enquadramento das actividades produtivas, entre as sociedades pré‑capitalistas e a nossa. Nesta, o que determina a natureza das relações de produção resulta necessariamente das próprias condições de realização da troca; naquelas, pelo contrário, são as instituições sociais a regular a circulação das coisas. E se a existência das mesmas, para o filósofo grego, não é função da sua trocabilidade, é, no fim de contas, o próprio conceito de mercadoria que lhe escapa. Embora tenha sido, para Marx, quem primeiro analisou a forma‑valor, tendo até formulado a sua figura mais simples (x de mercadoria A = y de mercadoria B), a verdade é que, também por causa das limitações históricas da sociedade do seu tempo, nessa relação de igualdade, enquanto condição de possibilidade da troca, não viu senão, por um lado, algo de estranho à essência das coisas e, por outro, um mero recurso ad hoc, que unicamente podia responder à contingência da necessidade prática. Assim, se bem que o texto peripatético permita (em particular, quando nele se reconhece — sob a pressão de uma generalização das trocas comerciais — a inevitabilidade da moeda) a sustentação da ideia de uma crematística que se deve subordinar à economia, há, de facto, em Aristóteles, a tendência congénita para as opor radicalmente: de um lado, uma aquisição natural de bens indispensáveis para a sobrevivência económica, i.e., relativa às necessidades da vida doméstica; do outro, uma forma mercantil de gerar riqueza, a qual culmina numa acumulação antinatural e ilimitada de dinheiro. Naturalmente, é nesta ausência de limites — autêntica desmesura! — que incide acerbamente a crítica aristotélica à  crematística: «Estranha riqueza esta [a do dinheiro] que não impede quem a possui com abundância de morrer de fome, tal como consta da história de Midas, o qual, devido à sua cupidez, transformava em ouro tudo o que tocava» (Política, 1257b). Quando a moeda já não é simplesmente um medium de troca, mas passa a ser uma finalidade sem fim, dá‑se, pois, a perversão da economia. Disso mesmo é sinal profético o desastre iminente do euro…

Eurico Carvalho

In «O Tecto»,
Ano XI, n.º 10,
Agosto/2011, pp. 15-16.



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