quinta-feira, 14 de julho de 2022

O FIM DA ESCOLA

 

É um facto a crescente diminuição da capacidade do subsistema económico para absorver as novas gerações que atingem a idade adulta, justificando-se assim a tese daqueles que já vêem no desemprego um fenómeno estrutural das sociedades capitalistas avançadas. Se nestas se impõe a sobredeterminação do ser pelo ter e a consequente avaliação da socialização em termos estritamente profissionais, torna-se então manifesto o potencial explosivo do que está aqui em jogo.

Não sendo um corpo isolado, a escola reflecte as condições do seu meio. Enquanto instituição nuclear de qualquer regime republicano democrático, à qual compete a formação de indivíduos capazes de assumir com dignidade e consciência o seu papel de guardiães da «coisa pública», sofre inevitavelmente as consequências da mudança social a que hoje assistimos, e cujo significado, culturalmente falando, se resume à selvagem mercantilização do saber, que agora se reduz à moeda corrente da informação.

Embora os problemas da escola não sejam, por um lado, apenas desta, mas da sociedade no seu todo, somos, por outro, progressivamente levados a pensar que as dificuldades de transição para a idade adulta se devem à incapacidade das instituições existentes (do sistema de ensino, em particular) para desempenhar convenientemente o que se tornou, por força da «demissão dos pais», em primeiro lugar, uma empreitada muito vasta de socialização. Essa incapacidade institucional (e, por assim dizer, institucionalizada) revela-se especialmente escandalosa no domínio educativo, cujo desenvolvimento (não há quem o negue!) passa por ser a suma medida do progresso de qualquer comunidade. Por isso mesmo, faz‑se mister resolver o problema  da nova subclasse de escolarizados: uma minoria de jovens cujo precoce abandono do ensino não lhes permite a aquisição de um suficiente «capital cultural» para responder com eficácia às exigências da vida moderna, indo assim engrossar as fileiras da mão‑de‑obra desqualificada.

Na nossa sociedade altamente especializada e complexa, numerosos agentes ou sistemas de socialização, sem qualquer coordenação entre si, funcionam simultânea e paralelamente. Tendo cada burocracia institucional delimitado cuidadosamente a sua esfera de prerrogativas e influências, multiplicam-se, qual polvo administrativo, os circuitos fechados e as cadeias anónimas de um poder exercido em nome de mecanismos meramente processuais. Estamos perante o florescer do fenómeno mais que discutido da burocratização, cujo sentido se manifesta numa administração galopante do quotidiano, a qual é própria das sociedades modernas em vias de «terciarização» de grande parte das suas actividades económicas. O imperialismo desta gramática administrativa (potencialmente totalitária) é enquadrado, nomeadamente, por Habermas, no contexto problemático da «colonização da esfera da experiência», cuja reprodução simbólica depende cada vez mais da intervenção programática dos meios monetários e burocráticos.

Os problemas da sociedade capitalista avançada de que nos fala Habermas já não são propriamente resultantes da ordem da produção, mas da do consumo. Trata-se, por conseguinte, de uma sociedade de clientes (no antigo sentido do termo). De facto, uma classe de funcionários (de resto, em extensão permanente) tem a seu cargo, desde o berço até ao túmulo, toda a população. Além disso, o leque de competências dos especialistas não pára de diminuir: já nenhum se ocupa do cliente como um todo. Por outras palavras (mais metafóricas): cuida‑se da doença, mas não do doente. Consequentemente, as relações entre os agentes dos serviços sociais e o cliente tornam‑se irregulares e fragmentárias. Com o risco adveniente da transformação das tarefas que executam numa rede elaborada de medidas de controlo, os funcionários públicos tendem a confundir os interesses da sua função com os seus próprios.

À medida que a família perde importância no domínio educativo e se verifica o aumento das dificuldades de acesso à chamada «vida activa», a escola acaba por assumir a condição de instituição intermediária e uma missão crescentemente pesada, cuja execução plena é exigida pelos alunos e encarregados de educação. Estará, no entanto, a escola, enquanto parte sujeita às razões do todo, em condições de responder a essas exigências? Na verdade, o subsistema de ensino, por fazer parte de um sistema que o ultrapassa, está hoje organizado em função de normas impostas por uma sociedade orientada para o sucesso. Paulatinamente, tornou‑se mais formal e administrativo, sendo muitas vezes concebido à maneira de uma indústria, cujo objectivo consiste no fornecimento de um produto. Resulta disto uma crise na sua organização, que se reflecte, por exemplo, na separação existente, de direito e de facto, entre a família e a escola. Tenha‑se também em conta a rendição contemporânea ao poder do mérito, que faz que sejam os estudos a principal via de acesso a uma carreira profissional. Deste modo, acentua‑se criticamente a selecção, cujos reflexos se evidenciam no processo de dramatização do insucesso escolar.

A institucionalização da educação formal, cuja história podemos remontar ao século V a. C., aos tempos da Sofística, revela-se (como facilmente se depreende do que ficou dito) indissociável do próprio desenvolvimento da Cidade. Ora, assistimos presentemente à degenerescência semântica e ontológica da ordem política, porque esta se faz gradualmente policial. Impera a lógica ubíqua da máquina burocrática e administrativa do Estado, da qual a escola não é senão uma peça privilegiada. Submetidos a este enquadramento institucional, tanto o docente como o discente se vêem na obrigação de cumprir papéis (respectivamente, o de funcionário observante e o de cliente interessado) com os quais, na maioria dos casos, não se identificam.

Analisando o papel do aluno, que é aquele que aqui mais nos interessa, verifica-se imediatamente que a sua posição na escola, como se disse acima, é a de um cliente, pois deixa‑se instruir e examinar por alguém que, sem qualquer partilha das responsabilidades do trabalho, organizou todo o processo de ensino e aprendizagem. Tudo isto é típico, como se sabe, do ensino tradicional, que alimenta inconscientemente a ilusão da simetria entre ensinar e aprender. Ademais, do ponto de vista psicanalítico, uma relação educativa estruturada nestes moldes favorece forçosamente a manutenção da pulsão oral, de que o saber será o objecto. Pois bem, o incremento da atitude oralizante fundamenta uma relação de consumo com o real, a qual, como é óbvio, é explorada economicamente. (Note‑se que a passagem da adolescência à idade adulta parece ser cada vez mais dificultada por interesses comerciais que procuram fazer da juventude uma clientela.)

Como ultrapassar o modo arcaico de relações entre aluno e docente? Porventura através da mutação das relações entre saber e poder, o que implica necessariamente a abolição do «culto totémico» da escola e, ainda, uma crítica da corrupção capitalista da função simbólica. Mas esta crítica não pode ser selvagem, como nos parece ser a de um certo «pensamento da diferença» que está hoje na moda, pensamento, esse, que, recalcando a «morte do Pai», cultiva o mito de uma fraternidade ilusória sob a bandeira da inominada «paixão do incesto».

Eurico de Carvalho

In  A Vaca Malhada: Revista de Filosofia, n.º 8  (Outono de 2016), pp. 20‑21.

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