quinta-feira, 2 de março de 2006

CARTA DE MEMÓRIO A UM PADRE CATÓLICO

Era um senhor, ou antes, uma espécie de cavalheiro russo, qui frisait la cinquantaine, de cabelos compridos e espessos e barba em bico. Trajava casaco castanho, de bom alfaiate, mas já muito gasto e fora de moda. A camisa, o lenço, tudo evocava o cavalheiro elegante; no entanto, visto de perto, tinha um aspecto duvidoso.

In Os Irmãos Karamazov

Meu caro Imaginário:

É bom escrever‑te de novo, depois de todo este silêncio. E na verdade, já é ironia do Deus dos caminhos ou dos caminhos de Deus que seja exactamente este «senhor» (cujo retrato — sabe‑lo bem — inspirou não só Dostoiévski mas também Goethe e Blake, entre outros mais...) a trazer‑me novamente para junto da tua companhia. Quem é ele, esta «espécie de cavalheiro russo»? Como já com certeza descobriste, a excelência em causa é — nem mais nem menos — o diabo.

Cultivando eu a excentricidade (no sentido etimológico) como princípio da autenticidade filosófica, alheio, por conseguinte, a quaisquer imperialismos de quaisquer Romas, não poderia deixar de ter em vista, em primeiro lugar, o questionamento das estratégias de poder subjacentes ao predomínio de determinados regimes discursivos em desfavor de outros na sua interacção com as práticas instituídas. Daí o meu interesse pelo Grande Separador — paradoxalmente ou não, abandonado pela Igreja. Com efeito, ninguém fala no diabo. Por que será?

Ora bem, como diz algures um certo polaco, de nome Kochakowicz, tendo em conta «o papel decisivo que o diabo teve na interpretação cristã da história humana e cósmica (não teria havido queda da raça humana sem ele e, consequentemente, também não teria havido nem redenção nem encarnação, nem morte, nem sofrimento, nem labor, e talvez nem conhecimento), é espantoso que obtenhamos informações tão escassas sobre ele através de declarações oficiais da Igreja». É claro que este silenciamento da «questão diabólica» radica na própria ambiguidade da teologia cristã, incapaz de se fundamentar consistentemente sem cair, por um lado, no maniqueísmo e, por outro, no platonismo.

A existência do diabo coloca‑nos no centro da problemática do mal. A solução de Agostinho — e hás‑de concordar comigo — não é satisfatória. Segundo o bispo de Hipona, «todas as coisas que existem são boas e aquele mal que [ele] procurava não é uma substância, pois se fosse substância seria um bem» (Conf., VII, 12). Mas se o mal, agostinianamente falando, é pura privação, negatividade pura, sem consistência própria, como se explica então a sua positividade, isto é, a sua eficiência neste mundo? Além do que, o velho dilema de Epicuro mantém‑se sem resposta. Vejamos as questões que ele implica: Quer Deus impedir o mal, mas não pode? Se assim é, trata‑se de um ser impotente. Pode, mas não quer impedi‑lo? Nesse caso, há que tê‑lo na conta de um sádico. Sadismo ou impotência? Venha o diabo e escolha!

Não podendo dar um estatuto ontológico ao mal sob pena de queda no maniqueísmo (cf. Jb, 26, 12) ou de tornar Deus culpado (cf. 1 Sm, 16, 14-23), o cristianismo, para manter a convertibilidade mútua do ser e do bem, só tem como saída o recalcamento da existência do diabo. Essa convertibilidade, todavia, pensada em grande parte segundo os cânones platónicos, arrisca‑se a contradizer a própria ontologia cristã ao confundir a malignidade com a matéria em si mesma. Deste modo, muitos colegas teus, ajudados pela discrepância de ideias entre os teólogos na sua luta contra o diabo — apóstolo do múltiplo, i.e., da materialidade —, condenam toda a multiplicidade em favor da máxima Unidade, sendo assim, do ponto de vista antropológico, mais platónicos que cristãos. Digamos que as consequências teóricas dessa cruzada antidiabólica, se levada a cabo com êxito, consistem na negação do conceito tradicional de salvação, a qual, segundo a cristologia, é sempre uma salvação pessoal, ou seja, sem perda da individualidade.

Entre a graça e a natureza, a antropologia cristã ordena‑se em função de uma ambiguidade fundamental: por um lado, o homem, ser deste mundo «imundo», parece condenado inevitavelmente, pela sua natureza, a uma vivência centrífuga, dispersa, assinalada pelo pecado; por outro, o homem, destinado a um futuro reino, não pode senão esperar pela graça, sendo por ela alçado a uma existência centrípeta, ou melhor, inseparável de Deus. Por isso mesmo, o homem, sujeito a essa esperança, como qualquer outro espírito criado, define‑se essencialmente, segundo o ponto de vista do cristianismo, pela ausência de vontade própria, ou seja, o homem é mais humano por intermédio da graça que o condena à passividade absoluta — como caminho privilegiado da salvação — do que pela actividade da sua natureza, isto é, a liberdade de pecar, porque só pecando, o que não deixa de ser paradoxal, o homem demonstra ser livre.

«Santo Agostinho disse que os homens eram semelhantes ao diabo se fizessem o que quisessem; a queda do diabo consistia no facto de ele haver querido ter uma vontade própria, e isto era, em si mesmo, um pecado irreparável, mesmo antes que o conteúdo desta vontade tomasse forma (Santo Anselmo de Cantuária insiste neste ponto). Por outras palavras, a vontade própria de um espírito criado — anjo ou homem, não importa — é má, não por ser dirigida a objectos específicos, mas por ser simplesmente vontade própria» (K.).

Como é bom de ver, tudo isto encaixa perfeitamente na metafísica neoplatónica do Ser, que é Uno, onde toda a individualidade e multiplicidade está condenada a regressar à Unidade primordial. «A nossa vitória sobre o diabo é assim consumada na auto‑aniquilação. Contudo — como ficou dito acima —, o conceito tradicional de salvação implica obviamente a preservação de uma personalidade humana distinta, mesmo nos estádios mais altos da união com Deus» (K.). E esta salvação, ou melhor, a sua promessa, constituiu sem dúvida — há que não esquecê‑lo! — a chave da expansão planetária da religião cristã.

O cristianismo não resolve este dilema, prefere deixá‑lo no limbo das ideias; recalca assim a existência do diabo, símbolo máximo da revolta, isto é, da liberdade. Donde o fascínio da humanidade pela sua figura. É de realçar aliás, curiosamente, que a presença do diabo na linguagem do quotidiano é muito mais visível que a de Deus. Por outro lado, não foram poucas as obras literárias inspiradas pelo diabo, pelo menos segundo Papini, o qual assinala algumas: o Leviatã de Hobbes, o Anticristo de Nietzsche e o Processo de Kafka.

Enfim, por agora, fico por aqui. Espero que não leves a mal, meu caro Imaginário, o facto de um ateu como eu dar tanta importância ao diabo. Adeus!

Memório

P.S. — Não é significativo que a Bíblia atribua a um homicida a fundação da primeira cidade? É como se o espaço citadino — berço da civilização — fosse o lugar por excelência do crime. Não por acaso, o Diabo de Dostoiévski é um homem urbano!

Eurico de Carvalho

Texto publicado em Setembro de 2003

no jornal «O Tecto» de Vila do Conde

(Ano XV: N.º 42).

Cf. página 8.

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